segunda-feira, 21 de maio de 2012

Miguel Torga, Todo o colonialismo é imoral...

No dia 20 de Maio de 1954, fez ontem 58 anos, foi publicado o Estatuto dos indígenas das províncias da Guiné, Angola e Moçambique, que viria a ser substituído em 1961, já depois do início da guerra colonial. No seu artigo 2º, o Estatuto definia: “Consideram-se indígenas das referidas províncias os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivido habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses”.

Algum tempo antes, Miguel Torga, de visita à Argélia, tinha escrito um texto elucidativo do seu pensamento sobre a questão, que é sempre útil revisitar:

"Argel, 14 de Setembro de 1953 – As duas bofetadas que um polícia francês acaba de dar na minha frente a um nativo vagabundo hão-de custar caro à França. Até me pareceu ver o céu claro da Argélia abrir-se ligeiramente, e Maomé tomar nota do caso no seu canhenho de represálias.
Este cartesianismo europeu não se convence de que toda a forma de colonialismo é imoral, seja ela a mais progressiva materialmente e a mais codificada socialmente. De que à universal e tentacular presença civilizadora do cristianismo falta sempre um dos lados do diálogo: a opinião do indígena. Que pensa ele do benefício? Que disse o inca no Peru, o asteca no México, o negro em Angola? Que diz o árabe, aqui? Interessa-lhe mais a penitência da cruz, ou a volúpia do crescente? Prefere ver as formas, ou adivinhá-las? Claramente que nunca passou pela cabeça dos apóstolos fazer a pergunta. Armados até aos dentes e senhores de uma técnica manual e mental demoníaca, julgam ocioso fazê-la. Mas todo o submetido responde, mais cedo ou mais tarde, mesmo sem ser interrogado. Embora a séculos da agressão, os Incas estão a responder, e os Astecas também, e os negros também. E não me parece que o mundo islâmico se cale, túrgido como o vejo, com todas as energias represadas nas dobras do albornoz.
Na voz salmodiada dos velhos muezins, que desce dos minare­tes e repercute multiplicada e rejuvenescida nas gargantas adoles­centes, no silêncio duma Casbá onde a alma forasteira penetra como lâmina em bainha sem fundo, no bulício das feiras que a miséria cir­cunda de um halo de comício, o espírito ocidental suspicaz sur­preende a força incoercível duma religião a que já nada de autêntico temos a opor, e o ódio de uma vontade humana que nunca se con­cebeu esmagada. Mais do que o poder dos engenhos de repressão, do que as seduções dum progresso que atropela as essências, vale a obstinação dum versículo que se estampa nos olhos, depois de ser carícia nos lábios e friso caligráfico nas mesquitas. E mais ainda do que ele vale a liberdade. O gosto de ser livre diante do próprio Deus”.

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