sábado, 31 de março de 2012

Inquisição, Uma longa herança


No dia 31 de Março de 1821, faz hoje 191 anos, foi abolida a Inquisição em Portugal. A Inquisição foi estabelecida em Portugal em 1536, tendo durado portanto 285 anos. As Cortes Constituintes, resultantes da revolução liberal de 1820, por proposta do deputado Francisco Simões Marchiocchi, aprovaram o decreto que aboliu o Conselho Geral do Santo Ofício, das inquisições e dos juízos do fisco. É este o texto do decreto de abolição:

“1º – O Conselho Geral do Santo Ofício, as inquisições, os juízos do fisco, e todas as suas dependências ficam abolidas do Reino de Portugal. O conhecimento dos processos pendentes, e que de futuro se formarem sobre causas espirituais, e meramente eclesiásticas, é restituído à jurisdição episcopal. O de outras quaisquer causas de que conheciam o referido tribunal e inquisições fica pertencendo aos ministros seculares, como o de outros crimes ordinários, para serem decididos na conformidade das leis existentes.
2º - Todos os regimentos, leis e ordens relativos à existência do referido tribunal e inquisições ficam revogados, e de nenhum efeito.
3º - Os bens, e rendimentos, que pertenciam aos ditos estabelecimentos, de qualquer natureza que sejam e por qualquer título que fossem adquiridos, serão provisoriamente administrados pelo Tesouro Nacional, assim como os outros rendimentos públicos.
4º - Todos os livros, manuscritos, processos findos e tudo o que mais existir nos cartórios do mencionado tribunal, e inquisições, serão remetidos à Biblioteca Pública de Lisboa, para serem conservados em cautela na Repartição dos Manuscritos, e inventariados.
5º - Por outro decreto, e depois de tomadas as necessárias informações, serão designados os ordenados que ficarão percebendo os empregados que serviram o dito tribunal e inquisições.
A Regência do Reino assim o tenha entendido e faça executar.
Paço das Cortes, 31 de Março de 1821 – Hermano José Braancamp do Sobral, presidente, Agostinho José Freire, deputado secretário, João Baptista Felgueiras, deputado secretário”.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Exercício Alcora, uma aliança tripartida



No dia 30 de Março de 1971, faz hoje 41 anos, teve início em Pretória mais uma reunião dos responsáveis militares de Portugal, África do Sul e Rodésia, os três “países Alcora”. Era a primeira reunião de alto nível da ATLC (Alcora Top Level Commission), um ano depois da primeira reunião informal, e quando já se definira o “Exercício Alcora”. Pela primeira vez, as três partes estiveram representadas por altos representantes da hierarquia militar de cada país. Durante a reunião foi melhorado o documento base que servira de fundamento à aprovação do “Exercício” em 9 de Outubro de 1970, e ficou consolidado o objectivo do “Exercício Alcora”, ou seja, da aliança político-militar dos três países. Consta da acta o seguinte:

“O Presidente, referindo-se ao documento de Outubro de 1970, citou o parágrafo inicial: O objectivo do Exercício Alcora consiste em investigar os processos e os meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, Rodésia e África do Sul, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral. Torna-se implícito que isto implicará também uma ajuda eventual a outros estados da África Austral. (…) O objectivo acima delineado engloba a coordenação de todos os aspectos e facetas da defesa naqueles domínios em que tal coordenação possa ser tanto rendosa como benéfica. Isto deverá, portanto, incluir actividades relativas a todos os ramos das Forças Armadas (Marinha, Exército e Força Aérea). Deve incluir-se neste âmbito o estudo da possível cooperação de natureza não militar quando tal cooperação possa contribuir para as operações militares”.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Marcelo Caetano, Um abismo nunca vem só...



No dia 28 de Março de 1974, faz hoje 38 anos, Marcelo Caetano fez, na Televisão e na Rádio, a sua última “conversa em família”. Desde 8 de Janeiro de 1969 que Marcelo Caetano se apresentava periodicamente na Televisão para uma “conversa” com os portugueses, o que contribuiu para popularizar a sua imagem em contraste com a figura fugidia de Salazar, seu antecessor. Para Caetano, a RTP (única que existia na altura) era um instrumento ao serviço do Governo e devia estar submetida ao que o Governo entendia por interesse nacional.
Esta "conversa em família" foi difundida poucos dias depois da tentativa do golpe militar das Caldas da Rainha. As palavras de Marcelo Caetano deixam transparecer as graves dificuldades que o regime vinha sentindo para se manter no poder. Aumentava a pressão diplomática na frente externa, a guerra colonial arrastava-se sem solução e a contestação interna fazia-se ouvir como nunca.
A comunicação é um misto de balanço e lamento, deixando entrever que ele próprio estava convencido que o seu mandato se aproximava do fim.
Eis um dos trechos principais:

“Tem-se a Nação recusado a abandonar as terras de além-mar onde grandes comunidades vivem e progridem como núcleos integrantes da Pátria Portuguesa. (…)
De todas as infâmias que os adversários da nossa presença em África têm posto a correr contra nós e alguns portugueses infelizmente repetem, confesso que me fere mais a de que defendemos o Ultramar para favorecer os grandes interesses capitalistas. (…) O que defendemos em África são os portugueses, de qualquer raça ou de qualquer cor, que confiam na bandeira portuguesa; é o princípio de que os continentes não são reservados a raças, mas neles deve ser possível, para aproveitar os espaços vazios e valorizar as riquezas inertes, o estabelecimento de sociedades multirraciais; é o direito dos brancos a viver nos lugares que tornaram habitáveis e trouxeram à civilização, e a participar no seu governo e administração. Num mundo que proclama a luta contra o racismo, que nega a legitimidade das discriminações raciais, é isso mesmo que defendemos: a possibilidade de, na África Austral, onde de longa data os europeus se fixaram, prosseguirem a sua evolução sociedades políticas não baseadas na cor da pele”.

Ao mesmo tempo que estas palavras eram proferidas, os representantes portugueses na aliança Alcora negociavam com a África do Sul o apoio financeiro necessário ao prosseguimento das operações militares, no âmbito do acordo assinado em 1970, entre Portugal e os regimes racistas da África do Sul e da Rodésia. Os militares que preparavam o 25 de Abril não tinham um conhecimento directo da formalidade da aliança, mas tinham ideia suficiente da existência de compromissos políticos entre Portugal e os dois regimes racistas. A razão dos capitães era também uma questão de dignidade política.

domingo, 25 de março de 2012

Carlos Fabião, Guiné, uma nova Índia...


No dia 25 de Março de 1973, faz hoje 39 anos, um avião Fiat G-91 foi abatido por um míssil na Guiné, próximo de Guileje, sendo a primeira vez que o PAIGC utilizava uma arma deste tipo.
O avião era pilotado pelo tenente Cardoso Pessoa, que foi o primeiro piloto português a sofrer um ataque com míssil SA7. Na sequência da acção conseguiu ejectar-se e foi recuperado por uma unidade de Comandos helitransportada.
Esta acção com um míssil terra-ar, que no relatório português foi designado por “arma desconhecida, tipo foguete” e só mais tarde identificado como Strella, representou o fim da supremacia aérea das forças portuguesas na Guiné. Mas não foi uma acção isolada, nem fortuita, já que, só na semana de 25 de Março a 1 de Abril, o PAIGC realizou mais as seguintes acções antiaéreas:
• Dois aviões T-6 foram flagelados junto à fronteira da Guiné Conacri na zona de Guileje;
• Um helicóptero ALIII foi flagelado com tiros de metralhadora;
• Outro Fiat G-91 foi atingido em 28 de Março com “arma desconhecida, tipo foguete”, em Madina do Boé, tendo explodido e perecido o piloto - o tenente-coronel piloto aviador Brito, o primeiro piloto a ser abatido por um míssil Strella aos comandos de um avião a reacção. A outra aeronave que com ele fazia parelha foi também flagelada com a mesma “arma desconhecida”, mas conseguiu escapar.
Na semana seguinte, de 1 a 8 de Abril, continuaram as acções antiaéreas do PAIGC:
• Um avião DO-27 flagelado com lança foguetes RPG;
• Um helicóptero ALIII flagelado com tiros de armas ligeiras em Guileje;
• Um avião T-6 abatido por arma desconhecida na região de Binta/Guidage, tendo-se despenhado e o piloto perecido.
• Um avião DO-27 abatido em Binta/Guidage, tendo perecido o piloto e o passageiro, um major do Exército.
• Um avião DO-27 flagelado em Talicó, sem consequências.

Quando, em 1984, a Associação 25 de Abril, realizou um colóquio comemorativo dos 10 anos do 25 de Abril, Carlos Fabião, que tinha feito várias comissões na Guiné, e foi o último representante de Portugal naquele território, durante o período de transição, apresentou a esse colóquio uma comunicação intitulada “A Descolonização na Guiné-Bissau”, onde refere a questão dos mísseis:

“Porém, nos fins de Março e em plena operação, o «strella» apareceu nos céus da Guiné. Foi o fim do domínio dos ares; a Força Aérea Portuguesa encontrou um adversário à altura contra o qual não conseguiu arranjar uma resposta adequada, com oportunidade.
A supremacia aérea total, que constituía o grande trunfo sobre o qual assentava toda a manobra militar no TO (Teatro de Operações), desapareceu bruscamente, permitindo o equilíbrio e logo a seguir a inversão da iniciativa a favor dos guerrilheiros do PAIGC. (…)
Por outro lado, toda a estratégia de Spínola, que passava sempre por uma solução política, negociada com o PAIGC, se desmoronava face à intransigência do Governo Central que não admitia, em condição alguma, o que apelidava de cedência política.
Para a estratégia colonial de Lisboa, a Guiné não passava de um simples peão, sem grande valor, que se deixava comer quando já não fosse possível defendê-lo mais. Aliás, Marcelo Caetano fora bem explícito ao admitir que para a Guiné se aceitava uma derrota militar mas nunca uma cedência política.
A partir deste conceito, já nada mais restava fazer na Guiné. As medidas a tomar, e era urgente que se tomassem, teriam de ser realizadas na metrópole. Impunha-se o derrube do governo marcelista antes que as colónias se perdessem por sucessivas derrotas militares cuja responsabilidade seria sempre atribuída às Forças Armadas Portuguesas. Como acontecera com a Índia.
O general Betencourt Rodrigues, o novo Governador e Comandante-Chefe da Guiné, aceitou a estratégia do governo-central que previa a resolução do problema guineense pela perda da colónia por uma derrota militar com o sacrifício de toda a guarnição, se tal se tornasse necessário. «Resistir até à exaustão dos meios», foi a ordem que recebeu. Não levou consigo nenhuma ideia ou projecto para fazer face a uma situação que se agravava, dia após dia. Limitou-se a procurar cumprir a «receita» marcelista: resistir. Resistir até ao fim. A única preocupação que deve ter tido foi quando constatou que essa resistência não ia, com certeza, durar até ao final da sua comissão. Com efeito, a situação política e militar na Guiné, após a partida de Spínola, entrou em acelarada degradação. A pressão dos guerrilheiros do PAIGC, nas três zonas operacionais do TO, nomeadamente a Leste e a Sul, sobre as dispersas e desmoralizadas guarnições portuguesas intensificou-se e só o 25 de Abril conseguiu evitar um completo desastre militar”.

sexta-feira, 23 de março de 2012

João Chagas, Acabaram-se os Partidos...


Nas vésperas da República, em 8 de Fevereiro de 1909, já fez portanto 103 anos, João Chagas publicou uma nova Carta, dirigida à “Comissão Paroquial de Canha”, por esta ter decidido ler ao povo as cartas escritas por si. Analisando a situação do momento, João Chagas tece algumas oportunas considerações sobre os partidos do poder. E como há textos que perduram, mesmo que tenhamos de fazer algumas pequenas adaptações, deixo aqui alguns trechos:

“Sem dúvida é lastimável que o povo não saiba ler. Esse é o maior crime do sistema politico que nos rege e ele bastava, se não tivesse praticado outros, para o condenar. Mais lamentável, porém, é que o povo ignore e eis o que sucede: ignora. Se em cada aldeia houvesse uma só voz que lhe fizesse conhecer o mecanismo do seu mal, Portugal em peso levantava-se. Era uma sublevação geral, porque está por provar que para o homem se indignar lhe seja necessário saber conjugar os verbos auxiliares. Ora, a verdade em Portugal indigna. Semear verdades, neste país, é semear a insurreição. Diga-se ao povo dos campos o que o povo das cidades já sabe e cada província de Portugal será um incêndio. (…)
Reduzir esta força [da democracia] é impossível. Pensa-se que ela é a de um partido. Não é. E' a da sociedade. Aniquilem amanhã todos os chefes republicanos e a sociedade erguer-se-á cada vez mais forte nas suas novas crenças, porque o que se passou em Portugal foi isto: instalou-se no coração deste povo uma crença nova e já de lá não sai! Essa crença não está depositada aqui ou ali, neste ou naquele tabernáculo: é o sentimento público. Tem um altar em cada coração. (…)
Quem é que vem aí declarar publicamente nos jornais que adere ao partido regenerador, ou ao partido progressista? Onde está a soberania intelectual, ou moral que neste país faça semelhante declaração? Onde estão mesmo os partidos? Onde estão mesmo esses simulacros de partidos, que foram os regeneradores e os progressistas? (…)
Desde longa data que estes grupos de plutocratas não tinham já princípios, ou programas que os distinguisse; mas se não tinham programas, ou princípios à parte, tinham pelo menos casa à parte. Hoje, nem isso têm. As necessidades da defesa comum juntaram-nos. Liberais governam com reaccionários e sob a sua inspiração. Progressistas governam com regeneradores. Um mesmo governo, o actual, é ao mesmo tempo presidido por um progressista e por um regenerador. Assim, acabaram-se os partidos e acabou-se até o liberalismo. Não há programas partidários e não há sequer princípios gerais. Reuniu-se tudo, confundiu-se tudo e é à solidariedade dessa massa confusa e suja de interesses pessoais coligados, que a monarquia está reduzida".

quarta-feira, 21 de março de 2012

Índia, Uma razão dos capitães

No dia 21 de Março de 1963, faz hoje 49 anos, foram conhecidos os veredictos sobre os oficiais da Índia. As sanções foram severas: expulsão das Forças Armadas de dez oficiais, incluindo o general Vassalo e Silva, governador e comandante-chefe, os oficiais do seu estado-maior e alguns comandantes de unidades; reforma compulsiva para cinco; meio ano de inactividade para nove. Tudo, sem a possibilidade de recurso, e mesmo sem direito a defesa, no âmbito do Regulamento de Disciplina Militar, aplicado pelos generais do Conselho Superior de Disciplina.

Os factos foram estes:
- No dia 18 de Dezembro de 1961, a União Indiana invadiu Goa, Damão e Diu, territórios que constituíam a Índia Portuguesa. Nas vésperas da invasão, a 14 de Dezembro, Salazar enviou uma mensagem ao governador, onde recomendava ao general que organizasse a defesa “pela forma que melhor possa fazer realçar o valor dos portugueses, segundo a velha tradição da Índia”, acrescentando: “É horrível pensar que possa significar o sacrifício total, mas recomendo e espero esse sacrifício como única forma de nos mantermos à altura das nossas tradições e prestarmos o maior serviço ao futuro da Nação”, e ainda: “Não prevejo possibilidade de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados ou marinheiros vitoriosos ou mortos”.
- A guarnição no território era de cerca de 4.000 militares. As unidades do Exército eram constituídas à base de caçadores, artilharia ligeira e reconhecimento; a Marinha tinha um aviso e três lanchas; não havia meios aéreos. A força de ataque da União Indiana era constituída por cerca de 50.000 militares, com unidades devidamente equipadas e armadas.
- O contingente militar português rendeu-se a 19 de Dezembro, tendo o general Vassalo e Silva ordenado a “suspensão do fogo” às suas tropas. Morreram 26 militares e foram feitos prisioneiros cerca de 4000.
- Só a 6 de Maio começou a repatriação dos prisioneiros portugueses, tendo o navio “Vera Cruz” chegado a Lisboa no dia 22 de Maio. Os militares que regressaram do cativeiro foram recebidos com desprezo e mesmo com hostilidade pelas autoridades portuguesas.

O modo como Salazar e o seu regime deixaram os militares portugueses entregues à sua sorte na Índia, desarmados e com uma missão suicida, o modo como foram recebidos e tratados no seu regresso a Portugal, marcaram-nos para sempre e constituíram um exemplo para todos os outros.
Quando Marcelo Caetano, em 1972, esquecendo uma lição da História, impediu Spínola de prosseguir conversações com Amílcar Cabral na Guiné, acabou por transmitir aos militares um inequívoco sinal de que eles poderiam transformar-se, outra vez, em bode expiatório de uma previsível derrota militar.
Foi aí, depois da demissão de Spínola, que começou o Movimento dos Capitães.

segunda-feira, 19 de março de 2012

António Vidal, Sou Republicano…



No dia 19 de Março de 1859, faz hoje 153 anos, o deputado e lente de Coimbra António Vidal fez uma intervenção na Câmara dos Deputados que pode considerar-se a primeira declaração republicana no Parlamento. Três dias antes, os Regeneradores tinham regressado ao poder pela mão do duque da Terceira, com Fontes Pereira de Melo na pasta do Reino. Subsistiam grandes divergências entre as principais figuras políticas da época, não só em relação às diferentes concepções do poder, mas especificamente ao exercício do poder moderador e das formas de intervenção régia na política governativa. O Diário da Câmara dos Deputados regista o seguinte:

Vozes – Ordem, ordem, chame o sr. deputado à ordem.
O sr. presidente – Chamo o sr. deputado à ordem…
O orador – Eu, senhor presidente, não estou fora da ordem; estou emitindo a minha opinião particular, e assim como se consentiu que os deputados daquele lado [o direito] se levantassem e se declarassem miguelistas, sem desenrolar a sua bandeira do absolutismo, não levem os ilustres deputados a mal que eu me declare republicano, sem desacatar as nossas instituições políticas vigentes, o governo monárquico-representativo. É minha profunda convicção que todo o liberal é republicano na sua essência [sussurro]; todo o liberal segue o sistema republicano por convicção [sussurro]. Eu estou dentro dos limites da Carta Constitucional, que me garante a livre expressão do pensamento; e o pensamento dos liberais, o dogma dos liberais é essencialmente o republicano; e julguei do meu dever declarar à Câmara que sou republicano em aspirações, sem que entre no meu ânimo desacatar as instituições políticas vigentes, pelas quais sempre tenho pugnado”.

sexta-feira, 16 de março de 2012

16 de Março de 1974, Uma tentativa condenada ao fracasso…



No dia 16 de Março de 1974, faz hoje 38 anos, uma força do Regimento de Infantaria 5 (Caldas da Rainha) saiu do seu quartel em direcção a Lisboa, com o objectivo de participar numa sublevação militar contra o Regime. Ainda não estão completamente esclarecidas as circunstâncias em que esta acção teve lugar, embora se possam estabelecer os seus contornos gerais.
Numa sessão realizada em Coimbra em 2007, quando se perfaziam 33 anos desse evento, fui convidado a apresentar a minha visão da questão, que resumi nos seguintes tópicos:

“O 16 de Março

1º - O Movimento dos Capitães, nas vésperas do 16 de Março, estava consciente da necessidade de derrubar o regime através de um golpe de Estado.
2º - Já existiam duas tendências no Movimento. Uma mais ligada ao general Spínola que demonstrava propensão para actuar autonomamente. Outra, mais alargada, em que participava todo o Movimento, incluindo os chamados spinolistas.
3º - Os motivos de conflito entre as duas correntes, nesta época, podem resumir-se:
a. O programa de Cascais;
b. A escolha do general;
c. O plano de operações.

4º - A corrente spinolista tem tendência para a acção imediata, baseando-se no facto de ter um programa (o livro “Portugal e o Futuro”), um chefe (o general Spínola) e um grupo de fiéis aderentes muito qualificados e experientes militarmente.
5º - A corrente autónoma (chamemos-lhe assim) em que curiosamente a corrente spinolista participava, tem já um programa (o documento de Cascais), mas tem o compromisso de elaborar um Programa Político dele resultante, com objectivos muito concretos, tem dois chefes (sendo que o maioritário – Costa Gomes – não dá sinais de apoiar decididamente a operação de derrube do regime) e procura elaborar um plano de operações que está longe ainda de satisfazer a maior parte dos responsáveis pela operação.
6º - Com base nas informações do general Spínola, no seu livro “Portugal sem Rumo”, a corrente spinolista reúne com certa frequência, por vezes com a presença do general. Depois do cancelamento do dia 14 pelas razões que aqui já foram referidas, o general Spínola estava convencido que a “operação” podia realizar-se no dia 19 de Março. Tenho a convicção que os seus apoiantes partilhavam desse plano.
7º - O general Spínola manteve sempre a ideia, mesmo depois do 16 de Março, de que os seus apoiantes dominavam a preparação e iriam conduzir a execução do movimento militar.
8º - O 16 de Março causa grandes danos à corrente spinolista, em virtude não só de inviabilizar um provável plano de execução da “operação” para 19 de Março, mas também porque levou à prisão alguns dos seus mais importantes elementos e da desmoralização de outros, assim como eleva o nível de vigilância do regime (através da DGS) sobre o próprio general.
9º - O 16 de Março permite ao Movimento tirar ilações sobre as fragilidades dos meios e da forma de defesa do regime e exerceu sobre o Movimento uma pressão definitiva, no sentido da irreversibilidade de uma acção violenta contra o regime.
10º - O 16 de Março ocasionou também a transferência de vários oficiais para diversas unidades espalhadas pelo país, assegurando a difusão da ideia matriz do Movimento – o derrube do regime é a questão prioritária.
11º - A forma como o 16 de Março decorreu convenceu finalmente todos, incluindo a corrente spinolista, de que era fundamental planear detalhadamente a acção militar, por forma a evitar surpresas e a convencer os operacionais.
12º - É de realçar que o regime assumiu que o tão temido movimento militar (que já se sabia ter centenas de comprometidos) não tinha capacidade para criar sérias dificuldades ao governo e ao regime – afinal a acção desencadeada nem tivera apoio militar, nem apoio popular.
13º - É um facto que o regime não alterou uma vírgula à sua política colonial, apesar de os acontecimentos terem tido, porventura, alguma influência na pressa de realizar um encontro secreto entre um representante do Governo português e representantes do PAIGC em Londres, que teve lugar em 26 e 27 de Março, aliás sem resultados.

Finalmente:
1 – O 16 de Março é um movimento preliminar, em relação ao 25 de Abril. Tem paralelo histórico com o 31 de Janeiro de 1891 em relação à implantação da República, mas também com o movimento de Gomes Freire de Andrade de 1817, antes do 24 de Agosto de 1820; e com o 18 de Abril de 1925, antes do 28 de Maio de 1926, para só citar os mais importantes.
2 – O 16 de Março é uma acção não planeada, que sai à rua precipitadamente, em resultado de um encadeamento de equívocos. Poderia pensar-se que ninguém planeia uma acção militar desta dimensão para um sábado, mas até nesta conclusão é necessário ter cuidado. De facto, as três tentativas preliminares de que acabei de falar e que foram todas derrotadas – o 31 de Janeiro de 1891, o 18 de Abril de 1925 e o 16 de Março de 1974, são todas a um sábado. Tive o cuidado de verificar os dias da semana de vários outros movimentos vitoriosos da nossa História recente. Ora vejamos:

24 de Agosto de 1820 – revolução liberal – foi terça-feira;
27 de Maio de 1823 – movimento miguelista da Vilafrancada – foi terça-feira;
30 de Abril de 1824 – novo movimento miguelista da Abrilada - foi sexta-feira;
9 de Julho de 1832 – desembarque no Mindelo da força liberal – foi segunda-feira;
9 de Setembro de 1837 – Revolução Setembrista – foi sexta-feira;
27 de Janeiro de 1842 – golpe de Estado de Costa Cabral no Porto – foi quinta-feira;
19 de Maio de 1870 – última saldanhada – foi quinta-feira;
5 de Outubro de 1910 – revolução republicana – foi quarta-feira;
21 de Janeiro de 1915 – movimento das espadas – foi quinta-feira;
5 de Dezembro de 1917 – movimento sidonista – foi quarta-feira;
28 de Maio de 1926 – foi sexta-feira;
3 de Fevereiro de 1927 – primeiro movimento contra a ditadura militar e único movimento derrotado de todos os que acabo de referir – foi quinta-feira;

E vejamos aqueles que nos dizem mais respeito:
14 de Março de 1974 – Primeira data de uma “operação” – era quinta-feira;
19 de Março de 1974 – data da “operação” referida pelo general Spínola no “Portugal sem Rumo” – era terça-feira;
16 de Março de 1974 – foi sábado;
25 de Abril de 1974 – foi quinta-feira.

Recomendação: quando planearem um novo movimento militar nunca o façam num sábado. Podemos dizer que é uma lição da História.

Em conclusão:
Não é sustentável a ideia de que o 16 de Março foi um movimento spinolista. É verdade que não o foi, mas quem estava em melhor situação de aproveitar um movimento vitorioso, nessa altura, era o grupo spinolista. Também por isso foi o que ficou mais exposto a um desaire.
O 16 de Março foi fundamental para moldar a forma que assumiu a intervenção militar em 25 de Abril de 1974”.

segunda-feira, 12 de março de 2012

João Chagas, Quando se pinta o diabo...


No dia 9 de Março de 1917, fez há dias 95 anos, a Alemanha declarou guerra a Portugal. João Chagas, ministro de Portugal em Paris (assim se chamava o Embaixador), adepto da entrada de Portugal na guerra, dava conta do facto no seu diário, no dia seguinte:

«10 de Março
A Alemanha declarou o estado de guerra com Portugal. Este facto considerável foi-me comunicado pelo ministro num telegrama de dez palavras! Corrida de jornalistas à Legação e um deles comunica-me a nota do Governo Alemão ao Governo Português, que as agências fazem espalhar profusamente e que a esta hora só a Legação de Portugal desconhece. “Comunique a esse governo que a Alemanha declarou a guerra a Portugal” diz-me de Lisboa o chefe da nossa diplomacia. Meu embaraço, porque não disponho de elementos de informação oficial que me permitam fazer acompanhar a comunicação de alguns factos que precisem a origem do conflito. Pois se de toda a questão dos navios não houve o menor conhecimento nesta casa! Às seis da tarde, lá vou ao Quai d'Orsay levar a minha nota, que compus como pude, a Cambon na ausência de Briand. O antigo embaixador de França em Berlim está mais informado do que eu do que se passa em Lisboa. Não tenho por isso novidades a dar-lhe. A entrevista é curta. No entanto toco de passagem na questão de Espanha e pergunto-lhe o que pensa a este respeito. Cambon não acredita que a Espanha deva inquietar Portugal. Nem está em condições de se envolver em conflitos, nem isso convém aos seus interesses. Entretanto, Cambon é de opinião que não se deve mexer no assunto. Para quê? E ao despedir-se cita-me esta frase de Bismarck: - À force de peindre le diable, on finit par le faire paraître».

O ditado valia, não apenas para a questão das relações com Espanha, mas sobretudo para a entrada de Portugal no conflito, com as consequências que depois a República teve de suportar, iniciando aí a sua extinção.

Ver o texto da declaração de guerra em : http://historiaaberta.com.sapo.pt/lib/doc004.htm

quinta-feira, 8 de março de 2012

Exercício Alcora, uma aliança entre Portugal e a África do Sul


No início de Março de 1970, faz agora 42 anos, realizou-se em Pretória, África do Sul, uma reunião de altas entidades militares portuguesas e sul-africanas. A reunião foi organizada pelas autoridades sul-africanas, com o pretexto de efectuar um balanço das actividades de apoio da África do Sul às forças portuguesas no Leste e Sudeste de Angola.
Na reunião, os sul-africanos apresentaram o seu ponto de vista sobre a cooperação até aí existente e fizeram várias propostas para o futuro. Dividiram a exposição nos seguintes pontos:

1ª Parte – A situação militar na África Austral, com referência especial para a República da África do Sul;
2ª Parte – A situação no Este e no Sueste de Angola – Distritos do Moxico e Cuando-Cubango;
3ª Parte – Plano de Defesa para a África Austral;
4ª Parte – A República da África do Sul na condução global da campanha no Sudeste de Angola.

O que os sul-africanos disseram foi incómodo para os militares portugueses, mas pouco puderam argumentar, em face da profundidade do apoio que as forças sul-africanas já nessa altura prestavam às forças portuguesas. Esta reunião teria depois continuidade com a assinatura, em Outubro desse ano, de um acordo de cooperação, que viria a chamar-se “Exercício Alcora”, base da aliança que os dois regimes, reforçados com a adesão da Rodésia, estabeleceriam nestes últimos anos da guerra, com o fim de constituir um bloco branco na África Austral.

Num dos documentos apresentados nessa reunião de Março de 1970, a África do Sul defendia que deviam ser preparados planos conjuntos, para responder às contingências da evolução das operações, nas seguintes áreas:
“1. Meios de comunicação (estradas, caminhos-de-ferro, aeroportos, pontes, etc.); 2. Telecomunicações, incluindo a selecção e a localização das frequências e a determinação de disposições conjuntas para a segurança das telecomunicações; 3. Elaboração de mapas e levantamentos topográficos; 4. Determinação das exigências conjuntas respeitantes a defesa aérea e a sistemas de aviso (alerta) prévio; 5. Determinação de uma doutrina comum para contra-subversão, incluindo procedimentos estratégicos, tácticos e operacionais ‘standard’, acordados mutuamente; 6. Disposições de segurança conjuntas; 7. Exploração conjunta das informações por uma Agência de Informação Conjunta; 8. Problemas de refugiados; 9. Disposições para o comando e controlo na eventualidade de operações conjuntas”.

Nota: Brevemente será publicada, em livro, uma análise das relações entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia nestes anos finais da guerra, da autoria de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Do Movimento dos Capitães ao Movimento das Forças Armadas



Em 5 de Março de 1974, faz hoje 38 anos, o Movimento dos Capitães fez a sua última reunião plenária em Cascais e aprovou o que depois se chamou “Documento de Cascais”.
Na marcha que empreenderam, em direcção à acção militar contra o regime, os capitães foram definindo como bases de actuação, os seguintes princípios:
- Organização democrática do próprio Movimento;
- Preparação de um plano de operações minucioso e adequado à operação militar necessária;
- Elaboração e aprovação de um programa político de democratização, que desse um sentido último à intervenção militar.
Com o objectivo de reforçar o empenhamento dos participantes no Movimento, todos vão assinar, desde o Verão de 1973, de forma colectiva, uma série de documentos de contestação, nos quais se virão a comprometer cerca de 700 oficiais, 17% do total de mais de 4.000 efectivos do Exército.
E se este número é significativo, ele fica mais evidente se assinalarmos que participam no Movimento 602 oficiais das Armas combatentes (Infantaria, Artilharia e Cavalaria), 29% do total de 2.079 oficiais destas armas. E ainda mais se realçarmos a participação de 485 majores e capitães destas Armas, 38% do total dos 1.279 existentes.
Mas não devemos confundir este primeiro movimento militar (O Movimento dos Capitães) com o seu sucessor, o Movimento das Forças Armadas.
À medida que o Movimento dos Capitães se foi transformando em MFA, tanto pelo alargamento aos três Ramos das Forças Armadas, como pela consciência da necessidade de uma acção política, foi-se afastando irremediavelmente das reivindicações corporativas iniciais.
Ora, esta evolução do Movimento dos Capitães para MFA consolidou-se verdadeiramente na aprovação do documento de Cascais, que, apesar do avanço que representou, só deixava de fora alguns militares irrevogavelmente sensíveis à questão colonial. Ninguém contestava já a necessidade de o "comum dos cidadãos" participar na "definição do interesse nacional", e de o poder político deter "o máximo de legitimidade" e as instituições serem "efectivamente representativas das aspirações e interesses do Povo". Todos aceitavam também que "sem democratização do país" não haveria solução para os "gravíssimos problemas que se abatem sobre nós".
Só o que, quase paradoxalmente, não era aceitável por todos (embora o fosse pela grande maioria), era a solução da guerra colonial proposta pelo documento de Cascais, solução que deveria ter em conta "a realidade incontroversa e irreversível da funda aspiração dos povos africanos a se governarem por si próprios".
O salto qualitativo que o Movimento deu em Cascais preparou o terreno para a consolidação do MFA, do seu principal documento e do apoio generalizado que mereceu antes e sobretudo depois do 25 de Abril: o Programa do MFA.

Eis um pequeno trecho do Documento de Cascais:

“Trata-se, portanto, antes de mais e acima de tudo, da obtenção a curto prazo de uma solução para o problema das Instituições no quadro de uma democracia política.
Neste contexto, consideramos indispensável e urgente que:
- Sejam definidos e clarificados os objectivos nacionais, e estes aceites pela Nação;
- Seja a Nação claramente elucidada sobre a parcela desses objectivos cuja prossecução cabe às F. A;
- Seja promovida e garantida a permanência da compatibilidade dessa parcela com a capacidade em meios;
- Seja promovida a reestruturação das F. A., visando a qualificação dos seus chefes baseada no seu valor militar, o aproveitamento dos meios em termos de eficiência e eficácia, o respeito pelos direitos individuais, e a justiça;
- Possam as F. A. sentir que é efectivamente proporcionada a salvaguarda legítima do seu prestígio, incluindo a sua não identificação com outras actividades que não pertencem ao seu múnus específico.
Só nestas condições poderão as F. A. ter um mínimo de garantia de que são instrumento da vontade da Nação e que não se encontram ao serviço de qualquer grupo. Então, já não lhes será permitido duvidar nem da legitimidade do poder, nem dos objectivos por este definidos e que tudo farão para cumprir”.

Ver o texto completo em: http://ernestomeloantunes.com.pt/omovimentoasforcasarmadaseanacao.htm

sábado, 3 de março de 2012

Herculano, Liberdade e classe média...


Em Dezembro de 1852, já fez portanto 159 anos, Alexandre Herculano escreveu o Prólogo da sua obra História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, cujo Tomo I saiu em 1854. Neste Prólogo, Herculano aborda mais uma vez a situação política e as soluções em conflito, explicando os valores que estavam em confronto. Retomando o seu conceito da classe média e da sua importância na sociedade, termina aconselhando os leitores a procurar respostas “na voz íntima do seu coração” para as perguntas que formula na análise da sociedade do seu tempo, só então decidindo cada um, “entre a reacção e a liberdade”. Mais uma vez se constata que há textos com duração prolongada, como se verifica pelos seguintes pequenos trechos:

“Confundindo as ideias de liberdade e progresso com as de licença e desenfreamento, o direito com a opressão e a propriedade, filha sacrossanta do trabalho, com a espoliação e o roubo; tomando, em suma, por sistema de reforma a dissolução social, há poucos anos que certos homens e certas escolas encheram de terror com as suas loucuras a classe média, a mais poderosa, a única verdadeira e eficazmente poderosa, das que compõem as sociedades modernas. (…)
Isto é grave, porque é atroz; mas ainda há aí causa mais grave. É que entre os grupos que vitoriam em quase toda a Europa as saturnais da reacção há um mais forte, mais activo e, sobretudo, mais eficaz, porque se acha senhor, em muitas partes, do poder público e serve-se desse poder e dos soldados e magistrados e agentes públicos que lhe obedecem para anular num dia as garantias conquistadas pelas nações em meio século de lutas terríveis. É o grupo dos Cains; daqueles a quem, mais tarde ou mais cedo, Deus e os homens hão-de, infalivelmente, perguntar: «Que fizestes de vossos irmãos?» É o grupo daqueles que deveram quanto são e quanto valem aos triunfos da liberdade; que, sem as lides dos comícios, dos parlamentos, da imprensa; sem o chamamento de todas as inteligências à arena dos partidos; calcados por um funcionalismo despótico, por uma nobreza orgulhosa, por um clero opulento e corrompido, teriam fechado o horizonte das suas ambições em serem mordomos ou causídicos de algum degenerado e raquítico descendente de Bayard ou do Cid ou em vestirem a opa de meninos do coro de algum pecunioso cabido. Estes tais, que trocaram o aposento caiado pela sala esplêndida, o nome peão de seus pais pelos títulos nobiliários, o sapato tauxiado e o trajo modesto do vulgo pelos lemistes e cetins cortesãos, cobertos de avelórios e lentejoulas, das condecorações com que o poder costuma marcar os seus rebanhos de consciências vendidas; estes tais, recostados nos sofás, para onde se atiraram de cima do tamborete de couro ou da cadeira de pinho, sentem esvair-se-lhes a cabeça com os tumultos eleitorais, com as lutas da imprensa, com as discussões tempestuosas - e não raro estéreis - das assembleias políticas. Demasiado repletos, perderam nos vapores dos banquetes a lucidez da inteligência; demasiado mimosos, perderam, reclinados nos coxins das suas carruagens, a energia laboriosa da classe de que saíram. As dolorosas e longas experiências da liberdade afiguram-se-lhes, agora, como um desvario do género humano e as tentativas das nações para se constituírem menos imperfeitamente como uma série de erros deploráveis. (…)
Este é o grupo dos grandes miseráveis. Ao pé dele, às vezes confundindo-se, compenetrando-se ambos, falando a mesma linguagem, está o da burguesia tímida, cujos nervos são débeis de mais para resistirem aos frequentes abalos das comoções políticas. (…)
O remédio contra as ideias exageradas de cabeças ardentes ou levianas ou contra os desígnios dos hipócritas da liberdade não está em reacções moralmente impossíveis. O incêndio que ameaçou por alguns meses devorar a Europa e que arde ainda debaixo das cinzas não se apaga nem com sangue, nem colocando em cima destas o cadáver corrupto do absolutismo. Para o extinguir, necessita-se das resistências organizadas e enérgicas, das ideias sãs e exequíveis; necessita-se de que a classe média não esqueça ou despreze tantas vezes os seus deveres; isto é, cumpre que se lembre de que a sua vida é dupla, pública e privada, de cidadãos e de homens; que, assim como o mau chefe de família é um indivíduo desonrado, o que despreza as funções públicas que lhe incumbe exercer para a manutenção da liberdade igualmente se desonra”.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Repórter X, O patriotismo português…



No dia 31 de Janeiro de 1926, fez há pouco 86 anos, o Repórter X escreveu uma crónica no jornal A Choldra, com o título “O patriotismo português e a nossa pseudo-independência”, adequado ao tempo que corria, mas admirável texto com duração garantida. O Repórter X, Reinaldo Ferreira (1897-1935), foi um extraordinário jornalista, se assim se pode dizer. Muitas das suas mais marcantes reportagens são puras invenções, mas de um sabor e de uma mestria tal que eram tidas como verdadeiras e apreciadas pelas suas outras qualidades, desde a beleza dos textos, à linguagem utilizada, aos comentários e considerações aduzidas… Deixou inúmeros escritos, novelas, peças de teatro, folhetins. Também realizou filmes e fundou jornais. Se houvesse memória, Reinaldo Ferreira seria uma extraordinária figura do nosso século XX.
Nesta pequena crónica publicada em A Choldra, jornal do Partido Republicano da Esquerda Democrática de José Domingues das Santos, podemos ler uma saborosa análise de algo que todos sentimos como ideia persistente – o patriotismo relacionado com o valor da nossa acção:

“O patriotismo, como o amor, como a fisionomia das cidades, como a ciência - sofre a influência das épocas, a moldagem dos séculos. O patriotismo em todos os países perdeu a “moralidade convencional e romântica” para ganhar precisão e exactidão práticas. Em Portugal, somos patriotas pelas mesmas fórmulas e pelas mesmas razões com que a velhada de Azambuja ou Lavarabos, prefere as diligências solavancadas e lentas a uma parelha, à vertigem, com molas e conforto, de um auto moderno.
E patriotas porque o sol brilha com ouros preciosos, e o clima tem suavidades de morfina - satisfazemo-nos em berrarias de praça, em palmadas exaltadas no peito. O nosso patriotismo tem um rival: o dos búlgaros. Em 1919, conheci em Anvers um búlgaro. Falámos de Portugal - e ele, levantando um canto dos lábios, com superioridade cómica, contentou-se em dizer:
- Se você conhecesse a Bulgária!
- Não conheço! Mas não há sol como o de Lisboa.
- Se você conhecesse o de Sófia!
- Bom... mas o nosso clima é o mais...
- Ah! Doçuras como as da temperatura búlgara...
- Vocês podem ter um sol e um clima como o nosso - o que não têm, com certeza, é “tesura" como a do portuguezinho.
- Bem se vê que você não conhece a história da Bulgária - replicou ele - É a mais gloriosa; é o maior desfile de bravos e de heróis…
- Mas... já experimentou os nossos barbeiros?
- Não podem ser melhores que os nossos...
- E o fado?
- Ora... ora… o “tchark” é a melodia mais sentimental que existe!
E não houve forma! O patriotismo do búlgaro, como o nosso, como o da Pérsia, defende apenas o que não marca; o que não dá prosperidades nem honra, porque não é produto da vontade dos homens, porque não exibe qualidades de raça nem virtudes de época.
E por isso…

***
Por isso, senhores, temos a ilusão triste e falsa do nosso orgulho de portugueses.
A nossa independência é uma fumarada de ópio.
A nossa autonomia, uma palavra sem significado nos dicionários da política mundial. A nossa soberania - uma mentira como a beleza da cocotte maquilhada - tem hoje menos vontade própria, menos orgulho, menos dignidade do que os protectorados ingleses, do que a desses reinos asiáticos fechados num ritual, escravizados em palácios seculares - e cujos monarcas, antes de jantar perguntam aos altos comissários europeus, de que menus devem servir-se.
O Egipto, na ratoeira da sua liberdade, agita-se, convulsiona-se, repele sugestões, luta com epilepsias loucas, contra a pressão da pata britânica. A Índia, sangrando num eterno martírio a San-Sebastião, segue o seu roteiro da invasão, caindo, levantando-se, mas reagindo sempre, e sempre pronta a estrangular o opressor.
Nós, não. O nosso patriotismo é feito de cavaqueira, de gestos, de ameaças contra quem duvidar da luz do nosso sol ou das delícias do nosso clima!

***
A palavra “portugalizar” não é uma calúnia. A Inglaterra guia-nos pelo labirinto da política internacional como um cicerone da Cook; a Inglaterra zanga-se, põe-nos de castigo e dá-nos torrões de açúcar, em forma de “visita de esquadra” como os tutores fazem aos pupilos, segundo as suas travessuras ou os seus juízos. A Inglaterra faz mais: a Inglaterra, através do “professor” que a representa em Lisboa, escreve cartas aos jornais, premiando ou reprovando as campanhas que no jornalismo se iniciem. (…)”.