sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Grande Guerra - o fuzilado português


Em 16 de Setembro de 1917, faz hoje 94 anos, foi fuzilado em França o soldado português João Augusto Ferreira de Almeida, último condenado à pena de morte por um tribunal português. A nossa colaboradora Marília Guerreiro publicou um texto alusivo ao assunto na obra que eu e o Carlos Matos Gomes dirigimos Portugal e a Grande Guerra, 1914-1918, que reproduzo:

"Acusação
Cerca das sete horas e quarenta e cinco minutos da manhã de 16 de Setembro de 1917 era executado, em Picantin, próximo de Laventie, o soldado chaufeur João Augusto Ferreira de Almeida. O acto efectivou-se perante a tropa reunida e na presença do promotor de justiça do Tribunal de Guerra junto do Quartel-General do CEP. Cumpria-se sentença do mesmo Tribunal e foram praticadas todas as formalidades regulamentares, como reza o termo do respectivo processo-crime.
Tudo começara menos de cinquenta dias antes, a 30 de Julho de 1917, quando o capitão Mousinho de Albuquerque mandou apresentar o soldado António Rei no Batalhão de Infantaria 23 por este ter prestado declarações de excepcional gravidade contra o soldado Ferreira de Almeida.
Organizado de imediato o processo, foram ouvidas, para a sua elaboração, nove testemunhas (sete soldados e dois sargentos). De uma forma geral todas confirmaram que durante o dia 29 de Julho, o soldado chaufeur João Ferreira de Almeida procurou saber o caminho para os alemães, declarando que já oferecera dinheiro a um soldado para que lhe fornecesse essa informação; mostrou ter intenção de indicar aos alemães, depois de desertar, os locais das tropas portuguesas através de dois mapas que possuía; insistiu em declarar que não acabaria o cumprimento da pena de sessenta dias de prisão a que fora condenado, pois antes disso passaria para os alemães.
Assim pôde o processo ser enviado em 7 de Agosto ao Juiz auditor a fim de que este emitisse parecer nos termos do artigo 337º do Código do Processo Criminal Militar. Foi o que este fez, concluindo que o arguido tentara passar para o inimigo, achando-se por isso incurso na caução do nº 1 do artigo 54º do Código de Justiça Militar e a quem, pelo artigo 1º do Decreto de 30 de Novembro de 1916, cabia a pena de morte. Por isso, parecia ao Juiz auditor que o arguido poderia ser julgado sumariamente como dispunha o artigo 337º do Código do Processo Criminal em vigor.
Com base nos elementos apurados pôde então o comandante do Corpo Expedicionário Português, general Fernando Tamagnini de Abreu e Silva, determinar que o soldado em causa respondesse perante o Tribunal de Guerra a fim de ali lhe ser feita a respectiva aplicação da lei. Para tal atendia a que João Augusto Ferreira de Almeida, soldado chaufeur nº 502, cometera os seguintes factos criminosos:
1º - Tentara passar para o inimigo, para o que perguntara a várias praças o caminho a seguir, chegando até a oferecer dinheiro com o fim de obter essa informação
2º - Quereria indicar ao inimigo os locais ocupados pelas tropas portuguesas, constando em duas cartas itinerárias de que a praça era portadora.
Ultimadas as diligências necessárias, o presidente do Tribunal de Guerra, coronel de Infantaria, António Luís Serrão de Carvalho marcou para 15 de Agosto o julgamento em conselho de guerra. Reunido o Tribunal em Roquetoire, verificou-se ser constituído, para além do seu presidente, pelo Juiz auditor, Dr. Joaquim de Aguiar Pimenta Carreira, pelo júri, constituído por cinco oficiais - major Joaquim Freire Ruas, capitães Adriano Augusto Pires e David José Gonçalves Magno e alferes Joaquim António Bernardino e Arnaldo Armindo Martins – e ainda pelo promotor, capitão Herculano Jorge Ferreira, e pelo secretário, tenente José Rosário Ferreira. Feita a chamada dos jurados e das testemunhas, lidas as principais peças do processo, identificado o réu e feitos os interrogatórios e alegações, o Juiz auditor ditou os seguintes quesitos:

1º - O facto de o arguido em 29 de Julho, encontrando-se na primeira linha, tentar passar para o inimigo perguntando a várias praças o caminho e oferecendo a uma dinheiro para que lhe prestasse essa informação;
2º - O facto de o arguido querer indicar ao inimigo os locais ocupados pelas tropas portuguesas, constantes de duas cartas itinerárias de que era portador;
3º - O mau comportamento do réu;
4º - O crime ser cometido em tempo de guerra;
5º - O réu ter cometido o crime com premeditação;
6º - O crime ter sido cometido, tendo o agente a obrigação especial de o não cometer;
7º - O estar ou não provado o imperfeito conhecimento do mal do crime.


Foi sobre tais quesitos que o júri se pronunciou.
Assim, o 2º quesito não foi provado por unanimidade; o 3º e o 4º foram provados, também por unanimidade; o 7º não foi provado por maioria e os restantes (1º, 5º e 6º) provados por maioria. Nos quesitos 1º (que viria a decidir a condenação), 5º, 6º e 7º o alferes Arnaldo Armindo Martins votou vencido. Foi portanto face aos autos que o promotor de justiça acusou o réu de, no dia 29 de Julho, tentar passar para o inimigo e de querer indicar ao mesmo os locais ocupados pelas tropas portuguesas constantes de duas cartas itinerárias, de que era portador, cometendo assim o crime de traição. Mas, discutida a causa e postos os quesitos ao júri, este declarou por maioria, somente o primeiro facto praticado pelo réu. Contudo, este se achou “incurso na sanção do artigo 54º, nº 1, do Código de Justiça Militar que diz: “Será condenado à morte com exautoração o militar que passar ou tentar passar para o inimigo”. E tendo considerado provadas as circunstâncias agravantes, o promotor de justiça conclui: “Julgo, pois, procedente e provada a acusação e nos termos do artigo 1º do decreto de 30 de Novembro de 1916 condeno o réu à morte com exautoração”.

Recurso e execução
Na mesma audiência o defensor oficioso recorreu da sentença proferida para o general comandante do CEP, porquanto a pena acessória de exautoração militar em que o réu havia sido condenado desaparecera da nova legislação, em virtude do que dispunha o artigo 5º do decreto de 16 de Março de 1911.
Sobre o recurso assim formulado, pronunciou-se o auditor geral do CEP, Dr. António Augusto d'Almeida Azevedo, concluindo “que a lei de 30 de Novembro de 1916, nº 2867, decretou no artigo 1º que fosse condenado à morte o militar que praticar qualquer dos crimes a que corresponda esta pena nos termos dos artigos 52º, 53º, 54º e outros do Código de Justiça Militar, mas não preceitua a condenação à morte com exautoração”. Foi por isso opinião do auditor geral que se desse provimento ao recurso, devendo ser proferida nova sentença por outro auditor.
Em face deste parecer, o presidente do Tribunal marcou novo julgamento para 12 de Setembro, não sem que um dia antes o defensor oficioso tenha solicitado a junção ao processo de um novo requerimento, decerto com a intenção de obrigar ao adiamento da audiência. Este requerimento baseava-se em que o soldado Ferreira de Almeida era filho de um doido (facto que, segundo o recurso, podia ser provado pelo Juiz auditor do Tribunal de Guerra); tinha dado indícios de alienação mental, pelo menos depois da sua condenação e teria mesmo dado tais indícios antes desse facto. Tais circunstâncias tinham sido referidas em público pelo próprio chefe do Serviço de Saúde, tenente-coronel médico, dr. José Gomes Ribeiro, pelo que o requerente solicitava que fosse feito exame médico-legal às faculdades mentais do soldado João Augusto Ferreira de Almeida.
Assim, no próprio dia 12 de Setembro o general-comandante do CEP solicita por despacho ao auditor geral uma informação sobre o assunto do requerimento. E este, de imediato, refere que “não juntou o requerente documento comprovativo do facto de dar indícios de alienação mental após a sua condenação, o que leva a concluir que é menos exacta semelhante alegação” e que, tendo o pedido “manifestamente por fim protelar a resolução de um crime gravíssimo”, era seu entender que deveria ser indeferido.
Não foi assim adiado o julgamento. E o novo auditor, articulando a sentença de forma semelhante à anterior, concluiu: “Julgo procedente e provada a acusação e, consequentemente, condeno o réu à morte, com expulsão”.
Quatro dias depois, a 16 de Setembro, cumpria-se a sentença".

Embora o episódio não seja muito referido na literatura de guerra, há pelo dois autores que citam explicitamente o caso. O primeiro é Eurico Teixeira de Sousa no seu livro Verdades Amargas da Grande Guerra, s.d., que refere:
"Duma espécie de barraca saiem gritos, denunciando uma pessoa em desespero; informam-nos de que os solta um desgraçado condenado à morte e que ali espera a confirmação da sentença. Não discuto a execução, que tanta celeuma levantou, revolto-me contra a desumanidade que representou esta demorada espera, durante a qual o desgraçado morreu mil vezes".

O segundo é Lapas de Gusmão, que no seu livro de 1932, Visão da Guerra, escreveu:
"Das fileiras soltavam-se curtas exclamações, pequenas frases, murmuradas em segredo:
- Raios partam a minha sorte! exclamava um. Logo eu é que havia de ser escolhido para isto...
- Eu. se adivinhasse para o que era, não me apanhavam cá, não! acrescentava outro.
- Pois eu não tenho pena nenhuma - interrompia, indignado, terceiro. Um ladrão que queria vender os seus camaradas... É bem feito.
- Vinte vidas que ele tivesse...
- Um traidor!
- Um desgraçado é que ele é! - dizia a medo uma voz".

E acrescenta mais adiante:
"As tropas desfilam então pela frente do cadáver, que contemplam, como um exemplo triste, à voz de “olhar à direita”.
O estertor tinha cessado. As tropas marcham aos seus destinos.
Momentos depois, num cemitério de guerra, próximo do lugar do suplício, do lado de lá da Estrada de Bacquerot, num campo de cultura, cercado de arame farpado, descia à cova o cadáver sangrento daquele que a justiça condenara a morrer sob a infamante acusação de traidor à Pátria.
Fora o primeiro e único fuzilamento consumado entre as tropas portuguesas, em França".