terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Artur Leitão, Os nossos meios políticos...


No dia 22 de Junho de 1925, vai fazer portanto 87 anos, Artur Leitão, médico, jornalista e republicano, escreveu no jornal O Espectro, um texto sobre a política portuguesa intitulado "...A rufo de tambor e toque de corneta", que reflectia, não apenas a época difícil que as instituições republicanas atravessavam, mas o próprio comportamento dos políticos da República, dirigindo-se sobretudo àqueles que, na sombra, conspiravam contra a democracia. E como há textos que nunca se desactualizam, aqui reproduzo alguns trechos:

“Lembro-me de ter lido, não sei ao certo onde, que a política é um ambiente de especialização. Assim como o exame de uma tela ou duma escultura deve ser feito a uma luz apropriada que lhe ponha em relevo todos os valores, assim também um problema social precisa de ser colocado numa atmosfera propícia que lhe demarque todos os contornos e dê nitidez a todas as arestas. Fora desse ambiente adequado, o assunto não obterá facilidades de análise, nem elementos de solução imparcial e genérica, porque hão-de vir a prejudicá-la o choque de interesses restritos, ou a introdução de critérios simplistas, ou alguma outra, se não mais, das múltiplas causas perturbadoras da serenidade, da ponderação, tacto e jeito que se tornam imprescindíveis para as funções de estadista.
E agora pergunto: Os nossos meios políticos constituem porventura, nesta crítica hora, os ambientes de especialização referidos na fórmula que cito e que tem tanto de sucinta como de bem achada?
(…)
Há efectivamente, nos meios políticos portugueses uma especialização, mas essa, em vez de ser esclarecedora, é deformante. Não coincide com o meio social – sobrepõe-se-lhe.
Desta maneira, sucede que um problema de interesse colectivo, quando penetra no ambiente político, muda-se desde logo num caso de interesse da clientela. Dá-se, nessa diferença de ambiente, o nacional e o partidarista, o mesmo que acontece à ponta de uma vara que se mergulha num tanque: a vara refracta-se, - entorta. Mas a inflexão da vara é um mero ilusionismo de óptica, ao passo que um problema nacional quando mergulha, quando chafurda nas águas estagnadas da nossa politiquice, fica tão real e verdadeiramente torto, como um chifre, com sua licença”.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Diário de Lisboa, Os assuntos militares devem ser estudados como problemas nacionais…


No dia 20 de Dezembro de 1924, já fez portanto 87 anos, o Diário de Lisboa publicou um editorial sobre o exército (na época queria dizer forças armadas) absolutamente notável, pela exactidão de pensamento, de análise, e mesmo de previsão, numa altura em que a segunda guerra mundial estava ainda a 15 anos de distância. Como se constata, é uma lição de jornalismo, de bom senso e mesmo de patriotismo. Por me parecer verdadeiramente actual, aqui o transcrevo, na íntegra:

“O Exército
Os assuntos militares devem ser estudados como problemas nacionais, sempre fora das sugestões duma política pouco escrupulosa nos meios para chegar aos seus fins.
É necessário proteger a defesa do país contra as ambições dos homens que agitam na sua mente planos sacrílegos, sob a aparência de patrióticos.
Apesar de se dizer que vamos brevemente entrar numa grande época de paz, achamos prudente não ligar muito crédito a tão sedutoras esperanças.
Portugal não pode resignar-se a aceitar das mãos dos outros o traçado do seu destino, porque abdicaria da missão que lhe compete, aquém e além das suas fronteiras.
Não está no ânimo de nenhum português tomar atitudes provocadoras e bélicas contra qualquer povo.
Mas seria rematada loucura que, fiados na nobreza dos nossos sentimentos, não nos preparássemos para manter íntegro e inviolável o nosso território, salvaguardando com a independência o culto da própria dignidade.
Não falta já quem preveja o próximo rompimento de uma nova guerra.
Embora não tenhamos uma crença bastante forte na bondade das nações, reputamos precipitadas estas profecias.
A paz em que vivemos encontra-se ainda sob a inspiração de Marte; as lutas não cessam, os conflitos eternizam-se, porque a Europa perdeu o seu velho equilíbrio, tanto sob o ponto de vista moral e intelectual como social e económico.
Spengler afirma que, em épocas como a nossa, não é a lei que governa os homens, mas os seus instintos.
Isto é uma incontestável verdade, sobretudo se prestarmos atenção à fraqueza das várias políticas nacionais, que todas se mostram inferiores à tarefa de reorganização que lhes incumbe.
Pondo de parte a questão social que hoje reveste um aspecto mundial, resta-nos ainda uma larga margem para surpresas de carácter internacional.
A última grande guerra não trouxe soluções, mas sim desilusões.
Quem se bateu, sente a desconfiança de haver arriscado a vida inutilmente.
Os vencedores abraçam uma vitória sem esperança; os vencidos vêem na sua derrota o suplício vão da sua força.
As cóleras rugem, as ameaças trovejam.
Poderá a Europa viver longamente nesta situação, sem quebrar as amarras do seu cativeiro?
Respondam os homens que conhecem a história e a lógica das suas lições: quando uma guerra não liquida os problemas que a originaram, outra guerra se encarrega disso.
Parece-nos pois que a reorganização do nosso exército se impõe como um caso de urgência, tanto mais imperioso quanto é certo que nós pertencemos ao número dos povos, cuja neutralidade nunca ficará isenta de perigos e danos”.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Joaquim da Silva Cunha, Com fé e com vontade de vencer…


No dia 27 de Junho de 1971, vai fazer 41 anos, Joaquim da Silva Cunha, ministro do Ultramar do governo de Marcelo Caetano, chegou a Lourenço Marques (hoje Maputo) para mais uma visita a Moçambique. Nas palavras proferidas à chegada, o ministro fez algumas considerações, que hoje devemos considerar extraordinárias. A pergunta que sempre me ocorre é como estas pessoas, estudiosas, conhecedoras do mundo, viajadas, cientes da política internacional, conseguiam assumir um discurso político feito de faz-de-conta, sem conteúdo e desligado de qualquer realidade. Disse o ministro:

“Ao pisar de novo as terras portuguesas de Moçambique saúdo todos os que com o seu esforço contribuem para o seu progresso e asseguram a sua defesa (…)
Há menos de um ano, quando daqui parti, afirmei a minha confiança no patriotismo dos portugueses de Moçambique e disse que encarava com optimismo o futuro desta terra como o de uma das mais promissoras parcelas de Portugal.
Posso, em consciência, reiterar o que então afirmei, pois não há dificuldade que se não vença nem problema que se não resolva quando se actue com rectidão de intenções, com fé e com vontade de vencer.
A fé e a vontade que nunca nos faltaram e que fez nascer esta Comunidade repartida pelo Mundo, formada de tantas e tão variadas gentes, unidas todas pela História e amalgamadas numa só Nação a que todos se orgulham de pertencer”.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Spínola, A importância de um livro...

No dia 22 de Fevereiro de 1974, faz hoje 38 anos, foi publicado o livro do general António de Spínola, Portugal e o Futuro, que deu um golpe certeiro no debilitado regime do Estado Novo e no governo de Marcelo Caetano. O livro foi importante não pelas ideias e soluções que defendia, mas sobretudo pelas repercussões que a sua publicação introduziu no processo de desagregação do regime. Depois do 25 de Abril, Jacinto Baptista, homem da oposição e jornalista, referiu a publicação do livro de Spínola no seu livro Caminhos para uma Revolução, da seguinte forma:

“Semanas antes de publicada a obra de Spínola, alguém, sob promessa de sigilo, mostrou-ma em provas, com emendas do punho do autor e disse-me por estas ou equivalentes palavras:
-Este livro vai ser o detonador (e o catalisador) de algo muito sério na vida nacional e, em si mesmo, um acontecimento da máxima importância política, talvez sem paralelo em Portugal no último meio século.
Bastava folheá-lo, como fiz naquele serão, entre amigos, para me aperceber de que quem me falava assim tinha razão. Portugal e o Futuro era, de facto, um acontecimento sem paralelo, não tanto por aquilo que nele se dizia, mas por quem o dizia, em consonância com um ideário e um desejo de acção que subterraneamente estavam em gestação ou se desenvolviam já em semiclandestinidade e encontrariam, na obra de António de Spínola, a primeira grande projecção pública, algo como que uma válvula de escape aberta a largos sectores da população portuguesa, politizados ou não politizados”.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

João Chagas, Chama-se a isto governar?


A 1 de Março de 1909, vai fazer 103 anos, João Chagas escreveu uma “Carta em Resposta ao Discurso da Coroa”, onde, entre outros assuntos, aborda a questão da instrução em Portugal, em comparação com outros países europeus. As brochuras contendo as Cartas eram publicadas pelo autor uma vez por semana, aos sábados, e vendiam-se por 50 réis “em todas as livrarias, tabacarias e quioskes”. O I Volume (chamado “Primeira Série”) foi publicado entre 10 de Dezembro de 1908 e 19 de Abril de 1909. Eis alguns trechos:

“Este povo espoliado, reduzido à miséria e lançado ao abandono, jaz na abjecta ignorância que se sabe.
No ponto de vista da instrução apenas dois países estão abaixo de Portugal: a Roménia e a Sérvia.
Pelo censo de 1878, a população era de 4.455.699 indivíduos. 3.151.774 não sabiam ler, nem escrever. A percentagem dos analfabetos era de 82%. No censo de 1890, a população subiu para 5.049.720 habitantes e eram ainda analfabetos 4.000.927 indivíduos, isto é, 79,2%. A população aumenta sempre. Estamos em 1900. Neste ano é de 5.423.132 habitantes e o número dos analfabetos é ainda de 4.261.336 indivíduos, isto é, 78,5%. Assim vê-se (Boletim da Associação das Escolas Móveis) que, de 1890 a 1900, em 10 anos, a percentagem dos analfabetos baixou 7 décimos por cento. (…)
Instruir uma mulher é abrir uma escola, dizia Júlio Simon. A par do homem ignorante, a mulher portuguesa é mais ignorante ainda. Segundo o censo de 1900, há em Portugal 2.831.132 mulheres. Destas apenas 425.287 sabem ler. Percentagem de analfabetas: 85%.
No distrito de Bragança, há 12 freguesias, em cada uma das quais só uma mulher sabe ler, e em sete freguesias nenhuma o sabe. No de Castelo Branco, há 4 freguesias, onde só uma mulher sabe ler. Em 3 freguesias nenhuma sabe ler. No de Coimbra, há 3 freguesias onde nenhuma mulher sabe ler; noutras só uma, ou duas. No de Évora há 6 freguesias onde nenhuma mulher sabe ler. No da Guarda, há 13 freguesias, em cada uma das quais só uma mulher sabe ler.
«Percorrem-se 22 povoações da Beira Baixa,e num só distrito, - diz o Boletim da Associação elas Escolas Móveis (Janeiro a Maio de 1907), donde recolho estas informações - para só encontrar 13 mulheres sabendo ler!».(…)
A tarefa de instruir, que em todas as sociedades modernas constitui o cuidado especial dos governos, foi absolutamente abandonada pelos nossos. Aqui não se tratou nunca de instruir o povo, mas ao contrário - os factos o provam - de o manter sistematicamente na ignorância.
Com efeito (e para não me referir senão aos países que têm relação com Portugal pela extensão do seu território e pelo número dos seus habitantes) a Bélgica, que tem 6.693.584 habitantes, gasta por ano, com a instrução primária, 7.628 contos; a Suíça, que tem 3.315.443 habitantes, gasta 9.311 contos; a Holanda, que tem 5.104.137 habitantes, gasta 7.761 contos. Portugal, com os seus 5.016.267 habitantes, gasta apenas - 1600 contos. (…)
Governar!
Chama-se a isto governar?”.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Aniceto, de apelido Afonso



No dia 18 de Fevereiro de 1942, faz hoje 70 anos, nasceu no lugar de Armoniz, freguesia e concelho de Vinhais, um indivíduo do sexo masculino, a quem foi posto o nome de Aniceto Henrique, tomando o apelido do pai, Afonso.
Nasceu às 03h10 da manhã, na quarta-feira de cinzas, incomodando toda a gente, em especial a mãe, mas também as parteiras, o pai, irmãos, amigos e vizinhos.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Raul Proença, O mal da República...


Raul Proença publicou, na Seara Nova de 29 de Dezembro de 1930, já fez portanto 81 anos, uma carta em resposta a um comentário do jornal Liberdade com o título “Do Estado absoluto ao Estado liberal”. Respigo alguns trechos:

“O mal da República está na miséria da sua ideologia e na estreiteza de vistas, na fraqueza ou na corrupção de grande parte dos seus homens.
O mal da República está em não ter sido tolerante quando deve, e quando deve enérgica.
O mal da República está em que prometemos sempre mais rigores do que o permitem os princípios, para, afinal, termos sempre menos do que o exige a prudência.
(…)
O mal da República está em termos ligado uma importância absoluta às formas exteriores do regime, o hino, as cores, a cartola do Presidente, a bandeira - que para mim me são estética à parte, absolutamente indiferentes - e nenhuma às suas aspirações, às suas doutrinas e às suas realidades essenciais.
O mal da República está em nos verem sempre prontos a confiar no primeiro imbecil agaloado que possua os recursos materiais de subverter a ordem legal, e em termos esperado a salvação pública de todos (dos Heróis, dos Chefes, dos Messias e até dos Asnos), menos de nós mesmos.
O mal da República está em termos feito consistir o nosso republicanismo em aclamar e vitoriar os homens públicos, em vez de os fiscalizar e controlar.
O mal da República está na criminosa impunidade com que temos dado imperecível alento a todos os movimentos revolucionários, introduzindo, por assim dizer, o direito de insurreição permanente - e sem ideias, entre as regalias fundamentais do Cidadão.
O mal da República está em não termos a coragem de castigar o crime, o verdadeiro, o único crime (o de facto, não o de opinião, que não há crimes de opinião numa Democracia) - prosseguindo assim, em vez da punição dos verdadeiros delinquentes, dos obstinados inimigos da ordem, a míseros bodes expiatórios que nada têm a ver com as sucessivas traições à República perpetradas de há vinte anos a esta parte por muitos dos que se dizem republicanos.
(…)
São estes e outros males análogos que é preciso combater”.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Padre Firmino, Mandamentos do vinho!


Só hoje regresso ao “Fio da História”, porque estive em Vinhais, na Feira do Fumeiro. Espero que os meus leitores me perdoem. Apreciei a companhia de bons amigos e familiares, as conversas que naturalmente acompanham estes encontros, a excelente organização da Feira e, sem qualquer dúvida, a qualidade dos produtos apresentados, em especial o célebre salpicão de Vinhais.

E porque vem a propósito, percorro o cancioneiro de Vinhais recolhido pelo Padre Firmino A. Martins, no seu Folklore do Concelho de Vinhais, cujo 2º e último volume foi publicado em 1938, há portanto 74 anos, e dele escolho uma cantiga chamada “Mandamentos do vinho".

"Mandamentos do vinho

Os mandamentos do vinho,
são dez por este caminho:

Primeiro amarás
o vinho de Portugal,
não lhe deitarás água,
que te pode fazer mal.

Segundo não jurarás
pela flor da laranjeira.
é ofensa que se faz
à nossa prima parreira.

Terceiro amarás
azeitonas, pão e queijo,
dai-lhe com o jarrinho
à medida do desejo.

Quarto não levantarás
outro que esteja deitado,
deita-te com ele ao comprido,
dá volta pr’ó outro lado.

O quinto não matarás
a sede por um pichel,
vai beber de bruços
à boca de um tonel.

O sexto não fornicar
senão por uma cuba grossa,
tapa-lhe bem a boca
pr’a que refolgar não possa.

Sétimo não furtarás
se não for para beber,
virás-te assim confessar
e eu hei-de te absolver

Oitavo não desejarás
copo que seja pequeno,
tira-lhe bem a escuma,
para que se ponha moreno.

O nono não desejarás
a salada do pepino,
ela é mui fresca de Verão,
carrega-lhe antes c’o vinho.

Estes dez mandamentos
se encerram em dois,
os soldados casados
têm chapéu como os bois”.

Nota: O Padre Firmino publicou a sua obra sobre Vinhais em dois volumes, o primeiro em 1927 e o segundo e último em 1938. Em 1987, a Câmara Municipal de Vinhais fez uma reedição em fac-simile dos dois volumes, da qual não sei se ainda haverá exemplares.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

António Sérgio, História: a busca de um método!


António Sérgio publicou pela primeira vez o seu texto Introdução Geográfico-Sociológica à História de Portugal em 1941, há portanto 71 anos. O autor iniciou a obra com as “Divagações Proemiais ao jovem leitor sobre a atitude mental que presidirá a este ensaio”. Tentando ilustrar o conceito de História de António Sérgio, extraem-se daqui os seguintes trechos:

“Não tiro da História uma «lição moral», tal como a concebia um Oliveira Martins, e não vou a ela para lhe pedir exemplos: tomo-a como um meio dos mais adequados para nos familiarizarmos com os casos da nação presente, com as necessidades e os problemas do Portugal de agora. Penso no agora, - e na tua acção. O deixarmos aos mortos o enterrar os seus mortos e o seguirmos «avante para além dos túmulos» (como aconselhava um Goethe) é hoje mais necessário do que nunca o foi.
Para tais objectivos, serão estas páginas como que a busca de um método, como que a investigação de uma rota. Outros mais aptos farão um dia o que neste compêndio se prenunciará apenas - e imperfeitissimamente; por isso, se vires qualquer frase no decorrer do livro que pareça apresentar-se como afirmação segura, e sem a infinita humildade que condiz com a obra, faz-me tu a justiça de querer admitir que tão-só a palavra me não foi fiel. (…)
Na multidão dos factos que os historiadores referem, fiz a escolha e a ordenação que se me afigurou mais útil: e isso com o intuito de suscitar em ti a tendência a encarar o viver de outrora à luz do sociólogo e do moralista crítico, do político progressivo e do reformador social, e com o gosto de pensares sobre a história Pátria, de examinares hipóteses a seu respeito. Por isso mesmo, procurarei levar-te (quanto for possível) ao contacto directo com os testemunhos históricos que me parecerem especialmente significativos, e merecedores por isso de ponderação e de crítica (prescindindo aliás de anotações eruditas, dado o carácter popular do ensaio). (…)
O mundo das ideias, para os indivíduos cultos, é bem menos de certezas que de problemas. O mais que podemos, frequentissimamente, é enunciar um problema em mais claros termos; e como a solução de qualquer problema suscita o aparecimento de problemas novos, a consciência da problemática é o que caracteriza o sábio. O que mais vale divulgar não é pois a «ciência», não são os conhecimentos, não são as doutrinas: o que mais vale divulgar é o espírito científico, que vem a ser o mesmo que o espírito crítico. (…)
Quanto a mim, fico sempre em dúvida de que haja factos puros, qualquer dado absoluto, qualquer percepção sem ideias, - sem interpretação, sem «teoria». Quedo-me indefinidamente a interrogar-me a mim mesmo sobre se não é afinal uma concepção plausível a da autonomia construtiva do intelecto humano na edificação do mundo que nós concebemos; a de que a origem do pensar não está fora dele, e de que o seu ponto de partida já é pensar, a de que se não acha linha de limitação bem nítida entre o que apenas é «facto» e o que já é «teoria»; a de que o sujeito é inseparável do respectivo objecto, e correlativo a ele. (…)
O risco do naufrágio é necessário à rota. Não temamos o erro: que arriscarmo-nos ao erro é condição do acertar, e foi por isso mesmo que já se disse algures: «mostrai-me um cientista que jamais errasse, e mostrar-vos-ei um indivíduo que nunca descobriu cousa alguma». Pode o historiador, em circunstâncias tais, adoptar aquele dito do Poincaré: «adivinhamos o passado, como adivinhamos o futuro». Sim, disse-o bem o matemático: adivinhar o passado. É o que tentarei fazer. Claro está, todavia, que no conceito da História que inspirou este ensaio importa que submetamos ao juízo crítico - e às minúcias e pesquisas dos buscadores de fontes - todo rasgo audacioso de adivinhação, e que nos não metamos a adivinhar o pretérito para simples deleite da imaginação romanesca (como o fez tantas vezes um Oliveira Martins), senão que para buscar uma relacionação dos casos, - quer dizer, uma maior inteligibilidade do viver de outrora (…)”.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Sarmento Pimentel, A revolução do Porto


No dia 3 de Fevereiro de 1927, faz hoje 85 anos, saiu à rua, na cidade do Porto, o primeiro movimento militar contra a Ditadura implantada em 28 de Maio de 1926. O movimento devia ocorrer simultaneamente no Porto e em Lisboa, mas na capital os revolucionários só conseguiram avançar a 7 de Fevereiro, o que foi fatal para ambos os focos da revolução. Outras tentativas se seguiriam a esta, mas nenhuma delas logrou obter êxito até ao 25 de Abril de 1974, 48 anos depois.
João Sarmento Pimentel, capitão demitido do Exército, participou na revolta e a ela se refere no livro que escreveu mais tarde no exílio brasileiro (1962) com o título Memórias do Capitão, do qual se transcreve o seguinte trecho:

“Foi poucos dias antes de eclodir a revolta que o General Simas Machado me procurou para tomar parte nela, alegando que, embora eu não tivesse comando e já há alguns anos afastado do serviço de quartel, a minha adesão traria para o lado dos revolucionários dois amigos meus com influência decisiva na guarnição militar de Lisboa - o major Ribeiro de Carvalho e capitão Francisco Aragão (…)
As démarches políticas, que eu não acompanhei nem quis conhecer, eram agora chefiadas por Jaime Cortesão e emperraram, não sei bem porquê. A data de 31 de Janeiro para o levante foi adiada para 3 de Fevereiro, começando no Porto sob a promessa de que 12 horas depois Lisboa se sublevava. Acreditando na promessa, aceitaram implicitamente a derrota.
Num desses dias que antecederam a revolução fui procurado por alguns oficiais que estavam na conjura e com eles discuti detalhes da luta para derrubar a ditadura militar, insistindo sempre no pronunciamento simultâneo de, pelo menos Porto e Lisboa (…)
Quatro anos depois, exilado e demitido do Exército, assim como Ribeiro de Carvalho e tantos outros que, como o pobre de mim, andaram pela África e Flandres a defender a República e a Democracia, tiveram ocasião de me dizer que se haviam enganado, e que a revolução do Porto se perdeu pela falta de apoio imediato dos republicanos de Lisboa.
Desde então considerei a revolução perdida. Como última esperança ainda se mandou numa traineira a Lisboa Raul Proença e Camilo Cortesão para pedirem mais uma vez auxílio aos correligionários do Sul e também para os informar da situação em que nos encontrávamos: muita gente por enterrar, os hospitais atulhados de feridos e as munições de guerra e as de boca a acabarem-se.
O Governo aproveitou a diversidade de opiniões no seio dos políticos da oposição, e da indecisão daqueles que lhe arreganhavam os dentes, para estabelecer uma defesa forte em Lisboa e para concentrar as tropas de outras Regiões Militares à roda da cidade do Porto, nos lugares estratégicos que lhe garantissem a iniciativa do ataque às forças revolucionárias.
Não foi difícil aos neutros perceberem para que lado pendia a vitória e que o Governo estava senhor das Fábricas de Munições e dos Caminhos de Ferro. E como, além duma parte da tropa cujos Comandos havia escolhido à sua feição totalitária, também tinha nas mãos largas o Banco de Portugal, a ditadura ordenou o bombardeamento indiscriminado e intensivo.
Dois dias depois o comando revolucionário pedia um armistício e Lisboa... revoltou-se!
Nós os do Porto, chamámos àquele levante tardio de Lisboa, a "Revolução do remorso".
É claro que a ditadura, podendo bater os seus inimigos, primeiro um e, depois deste vencido, o outro esmagou este retardatário impiedosamente.
Deu-se até ao esporte salazarista de andar a caçar a tiro, nas ruas de Lisboa, os republicanos tresmalhados, como quem caça coelhos”.

Nota pessoal: Tive o privilégio de acompanhar o conselheiro da Revolução, António Marques Júnior a S. Paulo, em 1982, para levarmos as estrelas de general ao capitão Sarmento Pimentel, depois da sua promoção decretada pelo Conselho da Revolução.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

João Chagas, Os deportados do 31 de Janeiro


João Chagas escreveu, em 31 de Outubro de 1910, já fez portanto 101 anos, uma Carta com o título “Carta sobre a responsabilidade do Partido Republicano perante a acção popular”, em que recorda a forma como os presos do 31 de Janeiro foram tratados, antes da deportação de muitos deles para Angola. São estes alguns trechos dessa Carta:

“Há vinte anos era fácil perseguir os republicanos, sem provocar por esse facto uma agitação pública, porque a ideia republicana não se tinha ainda apoderado da alma popular. A revolução do Porto foi sufocada e o povo viu sem revolta partir os revolucionários para a deportação e o exílio. Do Tejo abalaram numa manhã para a África dois navios cheios deles, e o coração de Lisboa não pulsou por isso com mais força. (…)
Antes de ser mandado para Angola, na leva de deportados de que fiz parte, passei um longo mês a bordo do couraçado Vasco da Gama, no Tejo, e fui como todos os meus companheiros, objecto de uma viva curiosidade por parte desta população de Lisboa, que não se recordava já da sua última revolta e nunca vira um revoltado a valer. Assim um numeroso povíléu foi durante esse mês a bordo do Vasco da Gama ver, com os seus olhos, esses bichos raros, que éramos nós. Por ali passaram milhares de indivíduos, mas - com tristeza o reconheci - não eram republicanos, não eram nada! (…)
No meio dessa multidão, os republicanos que ali iam para nos testemunhar a sua solidariedade, eram apenas alguns, e a todos conhecíamos pelos seus nomes. Eram o que nós então chamávamos o partido.
Uma manhã fomos levados de bordo do Vasco da Gama para bordo do Cazengo. Não nos preveniram sequer, e assim nós não pudemos dizer um último adeus aos nossos. Nos lanchões que nos levaram rio abaixo até o Cazengo, que nos esperava em Paço de Arcos, íamos comprimidos como reses. A manhã estava linda e o panorama da cidade desenrolava-se aos nossos olhos como uma última visão da pátria, do lar, da família, da vida feliz. «Adeus!, adeus !», gritavam todos agitando os braços enquanto os lanchães cortavam a água deixando Lisboa para trás; mas Lisboa não respondia. Lisboa dormia ainda, indiferente a nós, que ali íamos para um destino desconhecido, e indiferente ao nosso destino. Então, como se a quisessem acordar do seu sono e da sua indiferença, os deportados entoaram num coro estridente uma Marselhesa que nunca terá sido cantada por vozes mais sufocadas pelas lágrimas, mas esse clamor pungente perdeu-se no ar, como o próprio anseio das suas almas precursoras. Lisboa não acordou.

Às armas, cidadãos!

Em vão! Em vão! Lisboa dormia. Dormia ainda, para só acordar muito tarde".