quarta-feira, 27 de junho de 2012

Henrique Galvão, O negro não passa de um animal de carga!


Em 27 de Junho de 1953, faz hoje 59 anos, foi publicada a Lei 2066 ou Lei Orgânica do Ultramar Português. O Estado Novo, depois da aprovação da Carta das Nações Unidas em 1945, cujo Artigo 73º definia os princípios de administração dos territórios não autónomos e a obrigação de transmitir ao Secretário-Geral informações sobre esses territórios, procurava um estatuto especial para as suas colónias que sustentasse a tese de que as colónias integravam uma grande nação pluricontinental e multirracial. O trabalho começou em 1951 com a integração do Acto Colonial de 1930 na Constituição e depois, pela publicação de uma nova Lei Orgânica do Ultramar.

Mas nem tudo correu bem. Primeiro, porque as Nações Unidas nunca aceitaram esta “habilidade”, condenando constantemente a atitude e a política de Portugal, e depois, porque algumas denúncias internas acabaram por esclarecer qual era a verdadeira situação nas sociedades coloniais. Entre estas denúncias, e em lugar de destaque, figura, por exemplo, em 1947, um relatório de Henrique Galvão apresentado à Assembleia Nacional em sessão secreta, depois de uma viagem de inspecção a Angola. É desse relatório o seguinte trecho:

“Os patrões criam obstáculos a uma solução humanitária do problema da mão-de-obra. Fazem-no contra, ou sob, protecção dos regulamentos oficiais, umas vezes iludindo as repartições encarregues de zelar pelo seu cumprimento, outras vezes subornando-as, explorando em seu benefício a falta de meios de coacção ou a branduras das autoridades, e usando de todo o poder e toda a influência que conseguem reunir. Eis os aspectos mais salientes da sua conduta.
a.      Resistência de toda a espécie a uma política de salários que seja económica e socialmente justa.
b.      Mau tratamento de trabalhadores. O castigo corporal ainda é usado; os patrões esquivam-se às suas obrigações no que se refere a alimentação, vestuário e assistência médica; a ideia de que o negro não passa de um animal de carga foi estabelecida; há uma indiferença manifesta quanto à saúde física e moral dos trabalhadores; uma classificação dos patrões pela forma como tratam os seus trabalhadores mostra uma tremenda percentagem de maus patrões.
c.       Desperdício de mão-de-obra. A mão-de-obra é usada como se fosse extraordinariamente abundante. Tudo é feito por mãos de negros, desde o puxar de carros do lixo até à drenagem dos pântanos.
d.      Carácter desumano dos recrutadores da mão-de-obra.
e.      Deslocação de trabalhadores para regiões distantes sem terem em conta a mudança brusca de clima. Os sofrimentos são especialmente árduos quando são levados do interior para a faixa costeira e de regiões saudáveis para regiões infestadas de moscas tsé-tsé.
f.        Abusos, não impedidos pelas autoridades, por parte dos comerciantes, para com os nativos.
g.      Desprezo absoluto quanto às condições de vida dos nativos.

Esta é, muito resumidamente descrita, a grave situação em que os povos nativos vivem e trabalham, embora o Governo tenha sido informado por mim de todos os pormenores.
Tomo a responsabilidade de provar que tudo isto é a verdade exacta. A única coisa que pode ser dita, é que não descrevi toda a verdade, ou melhor, que a não apresentei debaixo de todas as suas numerosas formas. Abstive-me de o fazer, só porque isso teria exigido muito mais tempo do que aquele de que eu poderia razoavelmente dispor para este propósito”.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Melo Antunes, Guerra injusta e guerra perdida...


No dia 25 de Junho de 1970, faz hoje 42 anos, realizou-se na Cooperativa de Estudos e Documentação, em Lisboa, um colóquio com o título “Reflexões sobre uma experiência pessoal” dirigido pelo capitão Ernesto de Melo Antunes.
Durante este colóquio foram abordados vários problemas ligados ao Exército e às Forças Armadas. Melo Antunes afirmou que “no regime fascista que nos governa os generais têm, através do Estado Maior General, influência decisiva na solução dos problemas militares, concentrando em si, nos bastidores, grande parte do poder político, perante o qual o próprio chefe do governo tem de se vergar”.
Melo Antunes disse que a guerra colonial era uma guerra injusta e era, além disso, uma guerra perdida. Criticou severamente a tese do governo de que a guerra do ultramar era benéfica para a economia do país e afirmou que não era verdade o boato de que a maioria dos oficiais estivessem materialmente interessados em fazer a guerra.
Melo Antunes exprimiu a opinião de que a solução da guerra só podia ser política – uma opinião partilhada pelos assistentes, onde a DGS destacou Pedro Coelho e Fernando Oneto.
Para Melo Antunes, a democratização das Forças Armadas só podia ser realizada com a queda do regime.

Quando eu e o Carlos de Matos Gomes publicámos a 1ª edição de Os Anos da Guerra Colonial decidimos dedicar a obra a Melo Antunes, através de um texto que servia, ao mesmo tempo, de introdução. O texto original, por motivo da menor disponibilidade de espaço, veio depois a ser truncado na edição seguinte, pelo que nos parece oportuno publicá-lo aqui, neste dia em que passam 42 anos depois da realização do colóquio referido.

«MELO ANTUNES – UMA HOMENAGEM SENTIDA
É muito raro na história de qualquer povo um homem reunir em si a coragem física, a coragem moral e a coragem histórica. Ernesto Melo Antunes foi um dos raros portugueses em que essas virtudes se entrelaçaram para fazerem dele o grande homem que indubitavelmente é.
Combateu de armas na mão e com coragem reconhecida, numa guerra que ele sabia injusta e injustificada, granjeando o respeito dos seus camaradas; combateu politicamente o regime responsável pela guerra, assumindo como cidadão os riscos da atitude ética e moral da luta pela democracia e pela liberdade; e, por fim, teve a coragem histórica de assumir as responsabilidades pelo fim da guerra e do colonialismo português.
Ao dedicarmos esta obra a Ernesto Melo Antunes estamos a dar o nosso modesto contributo para o colocar na galeria de grandes figuras, onde ele devia ter lugar destacado, e para lhe agradecer, como portugueses e como militares, o seu excepcional contributo para que Portugal seja hoje uma nação respeitada e dignificada. Todos devemos a Ernesto Melo Antunes a possibilidade de decidir os nossos destinos em liberdade.
O texto que publicamos a seguir, o relato de um informador sobre uma conferência que Melo Antunes proferiu em 1970, é um extraordinário documento que revela o melhor e o pior de nós e de Portugal. De um lado, a coragem, a grandeza, a generosidade, a dignidade de um militar que, além da luminosa clarividência com que via o futuro de Portugal e da guerra colonial, desafiava um regime ignóbil de mãos nuas, apenas armado da sua inteligência e força de carácter; do outro o repugnante delator, o mesquinho agente infiltrado que trai aqueles que lhe abriram a porta, um ser sem nome.
É, contudo, a esse ser, a esse sabujo do regime, certamente treinado a reproduzir de memória as palavras incómodas, que devemos o documento excepcional que é a conferência de Melo Antunes.
Registe-se ainda como digna a atitude do então Ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, que mandou secamente arquivar o papel delatório, preferindo o militar oposicionista ao verme da situação.
Nós, os autores, sentimo-nos particularmente honrados em prestar este modesto tributo a Ernesto Melo Antunes, trazendo a público este texto, nesta obra sobre os Anos do Fim. Ele serviu-nos de exemplo e só podemos desejar que inspire também outros como nos inspirou a nós.

“No dia 25 do corrente, realizou-se na Cooperativa de Estudos e Documentação, pelas 21.30 horas, um “colóquio” sob o título de “REFLEXÕES SOBRE UMA EXPERIÊNCIA PESSOAL”, dirigido pelo Capitão ERNESTO DE MELO ANTUNES, tendo como animadores os dirigentes da Cooperativa, FERNANDO ONETO e Dr. PEDRO COELHO.
Durante este "colóquio" foram abordados vários proble­mas ligados ao Exército, ou melhor, às Forças Armadas, quer em países estrangeiros, como os Estados Unidos, quer em Portugal, especialmente no que diz respeito à maior ou menor influência que o Exército tem junto dos respectivos Governos.
Quanto aos Estados Unidos, o Capitão ANTUNES referiu-se largamente à decisiva influência que o Pentágono, isto é, os Gene­rais e o Estado Maior exercem sobre as decisões do Governo de Nixon, quanto à guerra do Vietnam. Afirmou que os Generais americanos, isto é, o alto Estado Maior, estavam estreitamente ligados às gran­des fábricas de armamento, fornecedoras do Pentágono, muitos per­tencendo aos seus Conselhos de Administração. Criticou severamente a política do presidente Nixon, quanto à guerra do Vietnam, que classificou de imperialista.
Depois de várias considerações sobre as Forças Armadas de diversos países da Europa, abordou o caso de Portugal.
Afirmou que o Exército exerce no nosso País, forte in­fluência junto do Governo e do seu chefe.
No regime fascista que nos governa, disse, os gene­rais, através do Estado Maior General, dispõem de influência deci­siva na solução dos problemas militares, concentrando em si, nos bastidores, grande parte do poder político, perante o qual o pró­prio chefe do Governo tem de se curvar.
O regime e o Governo são, de facto, dominados pelos oficiais generais, pois são eles que fazem a guerra no Ultramar, e as suas exigências são ordens para o Governo. As necessidades da guerra colonial são cada vez maiores, em homens e material, disse, e os altos comandos coloniais impõem a sua vontade ao Governo.
O regime de MARCELO CAETANO é, de facto, uma ditadura militar. O Governo, devido à guerra colonial está, presentemente, forte­mente influenciado pelos militares, que, através dos Estados-Maiores Generais, aqui e no Ultramar, impõem as suas decisões.
Ultimamente, disse, os generais que estão à frente dos altos Comandos no Ultramar exigiram ao Governo a compra urgente de helicópteros, para melhor controlarem as operações militares e a actividade dos terroristas.
O Governo curvou-se perante as exigências dos generais, disse, e comprou 120 helicópteros de 5 lugares e 20 outros de maior lotação semelhantes aos usados pelos americanos no Vietnam.
O nosso Corpo de Estado-Maior General é constituído, na sua maioria, por elementos reaccionários e conservadores, verdadei­ros burocratas, vaidosos e comodistas, que se limitam a dar ordens, na sua maioria, confortavelmente instalados nos seus confortáveis gabinetes, em Bissau, Luanda ou Lourenço Marques, enquanto os ofi­ciais das diversas armas se batem na frente, pelos interesses in­confessáveis dos "tubarões" que enriquecem à custa do esforço militar colonial.
Há guerras justas e injustas, disse. A nossa guerra colonial é uma guerra injusta. E é, além disso, uma guerra perdida.
Criticou severamente a tese do nosso Estado-Maior Gene­ral, segundo a qual a guerra do Ultramar tem sido altamente benéfica para a Economia do País, permitindo a criação de novas indústrias e o desenvolvimento de outras, ligadas ao esforço de guerra. Contestou também a afirmação de que as consideráveis somas de di­nheiro, movimentadas pelos vencimentos dos soldados e oficiais destacados no Ultramar, têm tido vantagens na Economia das nossas Pro­víncias Ultramarinas, pois a maior parte das referidas somas são enviadas ou ficam na Metrópole.
Afirmou, ainda, que não era verdadeiro o boato de que a maioria dos oficiais combatentes no Ultramar estivessem mate­rialmente interessados em fazer a guerra, levados unicamente pelas vantagens de ordem material.
Isso não é verdade, pois a guerra colonial é deveras perigosa e esgotante, tanto moral como fisicamente. E os vencimen­tos dos oficiais em missão no Ultramar não são tão elevados - muito pelo contrário - que compensem os terríveis riscos e esforços que a guerra colonial impõe aos combatentes. Pelo menos, posso a­firmar, disse o Cap. MELO ANTUNES, que não é esse o caso dos oficiais de média patente - de capitão a tenente-coronel - que cumprem patrioticamente o seu dever de soldados, com verdadeiro espírito de sacrifício.
Na opinião do Cap. ANTUNES a solução do problema colo­nial só pode ser política, opinião perfilhada por todos os presen­tes! Militarmente, disse, nunca poderemos vencer a guerra colonial.
O prolongamento do esforço militar no Ultramar está esgotando gravemente a economia do País e sacrificando, ingloria­mente, milhares de jovens, entre mortos e mutilados, em defesa du­ma causa sem futuro e condenada ao malogro.
O próprio chefe do Governo não ignora esse facto, mas agora é demasiado tarde para ele recuar ou negociar.
Isso significaria a sua queda e a do regime.
O Cap. MELO ANTUNES referiu-se também a uma eventual democratização do Exército. Afirmou categoricamente que isso é impossível, presentemente. Por um lado, o País está em guerra e o Exército encontra-se, na sua grande maioria, em missão de combate no Ultramar, com os oficiais sujeitos a uma severa disciplina e li­gados aos seus deveres militares.
Por outro lado, o País é presentemente governado por um governo fascista, que é de facto uma ditadura militar, estando os oficiais democratas estreitamente vigiados e controlados pelas polícias militar e política (sic).
O verdadeiro poder, militar e político, está de facto, afirmou, nas mãos de um reduzido grupo de oficiais generais das Forças Armadas em altos postos de chefia, aqui e no Ultramar, e que, através dos Estados-Maiores Generais, impõem a sua vontade nas frentes de combate e na retaguarda, com a restante colaboração das po­lícias militar e política.
Por tudo isto, disse o Cap. MELO ANTUNES, o problema da democratização das nossas Forças Armadas, só será possível com a queda do actual regime. No pé em que as coisas se encontram presentemente é praticamente impossível qualquer tentativa revolucionária de carácter militar. Estamos em guerra, e as Forças Armadas batem-se no Ultramar no cumprimento dos seus deveres.
No momento presente compete aos dirigentes civis prepa­rar o terreno na retaguarda, através duma adequada e eficiente propaganda e da politização das massas, especialmente do sector estu­dantil, no sentido duma futura solução política para a guerra colo­nial, embora isso implique a queda do Governo e do regime de Marcello Caetano.
Para que seja possível a democratização do nosso Exército é indispensável derrubar o regime, eliminar os generais pró-Salazaristas, agora ligados ao Chefe do Governo, bem como as polícias.
As afirmações do Cap. ANTUNES foram aplaudidas por toda a assistência, bastante reduzida e seleccionada, cerca de 38 pes­soas, na sua maioria dirigentes da Cooperativa e suas famílias.
Tomaram parte activa no colóquio, além do Cap. ANTUNES, o FERNANDO ONETO e o Dr. PEDRO COELHO, que apoiaram entusiastica­mente as suas afirmações, louvando a sua coragem ao abordar tão grave e melindroso assunto. No final foi pedida a maior discrição da parte dos assistentes ao colóquio, quanto às afirmações do Cap. AN­TUNES, pois trata-se dum oficial no activo e sujeito a grandes san­ções, se as suas afirmações forem conhecidas dos seus superiores.

Lisboa, 26 de Junho de 1970”.

Texto de uma informação enviada ao ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, e que mereceu o seguinte despacho: “Arquivar em secreto”.
Fonte: Arquivo da Defesa Nacional, Caixa 7670, Documento 3».
Nota: sublinhados e maiúsculas do original.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Zé Povinho, Um dia será Povo...


No dia 19 de Junho de 1875, faz hoje 137 anos, apareceu a primeira caricatura do Zé Povinho n’ A Lanterna Mágica, nº 5, criação de Rafael Bordalo Pinheiro, que desde então tem convivido connosco, pela mão não apenas do seu criador, mas de muitos outros artistas e escritores.
Em 1882, João Ribaixo (Ramalho Ortigão) escreveu um belíssimo texto sobre o Zé Povinho, O soberano!,  no Álbum das Glórias. Eis alguns trechos:

“Brinca brincando esta criança tem hoje perto de cinquenta anos de idade!
Não consta que jamais as graças da infância se houvessem conservado por tão longo tempo num homem como fenomenalmente se conservam no sujeito que hoje biografamos.
Nele concorrem em feliz conjunto todas as partes que nos enlevam e encantam no bom menino: Casta inocência, temor de Deus, obediência a seus mestres, humildade, nariz por assoar, dor de barriga às segundas-feiras, e santíssima ignorância.
Aos carinhosos desvelos de sua extremosa mãe, a Carta, e de seu galhofeiro pai, o Parlamentarismo, se deve o estado miraculoso de infantilidade que tão vantajosamente recomenda este vulto à simpatia e ao espanto de todo o mundo.
Eis em resumo a instrutiva história de portento tão admirável e prodigioso: (…)
Crescido, Zé Povinho correspondeu às esperanças que nele depositaram os solícitos poderes do Reino. Como desenvolvimentos de cabeça, ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem.
De músculos, porém, de epiderme e de coiro, engrossou, endureceu e calejou como se quer e, cumprindo com brio a missão que lhe cabe, ele paga a sua satisfatoriamente.
De resto, dorme, reza, e dá os vivas que são precisos.
Um dia virá talvez em que ele mude de figura e mude também de nome para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo. Mas muitos impostos novos, empréstimos, novos tratados e novos discursos correrão na ampulheta constitucional do tempo antes que chegue esse dia tempestuoso.
Por tudo pois, ao resumirmos nestes leves traços, a interessante história de Zé Povinho, os nossos parabéns cordiais a seus sábios e carinhosos pais, os Públicos Poderes”.

 

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Guerra Colonial, Uma aliança racista!

No dia 18 de Junho de 1973, faz hoje 39 anos, iniciou-se, em Pretória, a quinta reunião de alto nível do “Exercício Alcora”, nome dado à aliança político-militar entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia, onde se discutiram as formas de organização de um “Quartel-General Permanente Combinado Alcora”.

Ao fazer o balanço geral das actividades, o presidente da reunião, general W. R. van der Riet, da África do Sul, salientou algumas informações importantes. Em primeiro lugar, disse “que os três Governos Alcora” já haviam aprovado o “Conceito Estratégico Global Alcora”. Depois, que a Subcomissão de Informações tinha “revisto a ameaça (Janeiro de 1973), particularmente no que se refere a uma possível ameaça convencional contra os territórios Alcora por volta de 1976”, pelo que tinha sido decidido discutir a ameaça num ponto específico da agenda. Finalmente, o presidente acrescentou que tendo sido determinado à subcomissão de Comando e Controle que “elaborasse propostas relativas à organização, funções, modus operandi e requisitos em pessoal para um Quartel-General Permanente Combinado Alcora”, esta tinha recomendado um ”Estado-Maior Permanente Alcora”, mas que os acontecimentos tinham ultrapassado essa proposta. De facto, “a proposta da RAS relativa a uma mais ampla organização foi discutida entre os ministros da Defesa de Portugal e da RAS que concordaram com o estabelecimento de uma Organização Permanente de Planeamento Alcora (PAPO)”. Mais, o presidente “expressou a sua satisfação pelo facto de todas as deliberações Alcora relativas a uma organização permanente” terem sido aprovadas pelos dois governos, sendo de salientar que a RAS se ofereceu “para fornecer acomodação e serviços administrativos requeridos pela PAPO em Pretória”. A estas informações, um representante rodesiano declarou que “o Governo Rodesiano aceitou em princípio as propostas feitas para a PAPO e acrescentou que os rodesianos estavam muito gratos e sensibilizados com a RAS pelo convite”, tendo o representante português acrescentado que “a delegação portuguesa se sentia muito satisfeita com o facto de a PAPO ser estabelecida”, chamando a atenção para dois factos recentes: “os governos africanos tinham recentemente feitos grandes esforços com o fim de resolver os seus diferendos e tinham progredido nos seus esforços contra nós” e “o acordo sobre a guerra do Vietnam podia conduzir ao fortalecimento das organizações terroristas e ao seu apoio com um aumento do fornecimento de armas e material”. Por isso, acrescentava o representante português, “o trabalho a realizar durante esta reunião seria da maior importância para a África Austral”.
O governo português, no final da sua existência, comprometia-se numa aliança contrária ao seu próprio entendimento político da “questão ultramarina”, preferindo uma aliança com os países racistas da África Austral a qualquer outra solução.
Ver: Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Os Anos da Guerra Colonial, Porto, Quidnovi, 2010, p. 732.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

José Régio, O medo mole…


No dia 13 de Junho de 1949, faz hoje 63 anos, o Estado Novo publicou o DL 37.447 sobre as chamadas “medidas de segurança”, em que o parágrafo único do Art. 22º diz o seguinte: “Cabe à Polícia Internacional e de Defesa do Estado a elaboração das propostas para aplicação ou prorrogação da medida de segurança. O director da Polícia Internacional e de Defesa do Estado poderá aplicar provisoriamente a medida de segurança, nos termos … (…)”. Os recursos eram resolvidos pelos tribunais plenários. A aplicação da medida de segurança permitia o prolongamento da detenção, para além da pena cumprida.

No mesmo ano, José Régio publicou um texto com o título “Recurso ao Medo”, num opúsculo dos serviços centrais da candidatura de Norton de Matos “Depoimento contra Depoimento”, texto que a censura impedira de ser publicado no jornal República:
“Não quero falar em represálias, não quero falar em sevícias, não quero falar em tiranias, a propósito do regime que há duas boas dezenas de anos se nos impôs. Não quero… porque não quero. Mas há uns bons anos que grande parte do povo português – deste povo que somos nós todos, e não só quem os governantes decretam – vive sob o entorpecedor império do medo. Também aqui pretendo não exagerar, e antes ser comedido. Nada é preciso exagerar para se provar não poder eternizar-se a estranha situação em que temos vivido. Sim, admito não se tratar entre nós do medo de terríveis torturas, vinganças e repressões. Não é, propriamente, pavor, o medo que nos tem vindo tolhendo. Mas é o medo indeciso, flutuante, hesitante, vago, mole, contínuo… O medo supremamente desmobilizador. (…)”.

domingo, 10 de junho de 2012

Camões, Vil tristeza…


No dia 10 de Junho de 1880, faz hoje 142 anos, comemorou-se o tricentenário de Camões, festa que os republicanos aproveitaram para combater a Monarquia e fazer a propaganda das ideias republicanas. Teófilo Braga escreveria o seguinte trecho sobre o evento, na sua História das Ideias Republicanas em Portugal:
“A democracia portuguesa conta com uma data gloriosa, que é o começo de uma era nova: o 10 de Junho de 1880. Nesse dia, todas as forças vivas, tudo quanto há com futuro ainda nesta pequena nacionalidade, vibrou com unanimidade ao impulso de um estímulo consciente, a tradição ligada ao nome de Camões como o representante e o símbolo da civilização de um povo que se sente fora da vida histórica. (…)
Nenhum passo a favor da liberdade portuguesa se deu sem que fosse provocado pela compreensão d’ Os Lusíadas (…) todos procuraram nesse paládio nacional as consolações do desterro, a inspiração para a renovação artística, o vínculo fraterno que ligava todas as vontades”.

Eis o meu contributo para a celebração do poeta:  duas estrofes d’ Os Lusíadas que, como outras, nos podem servir de inspiração:

E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente,
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
                        Canto IX, 93

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.
Canto X, 145

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Raul Brandão, O ruído irresistível do dinheiro…


Raul Brandão publicou o seu livro El-Rei Junot em 1912, faz agora 100 anos. Depois de largamente referir o ambiente que antecede a iminência da chegada das tropas napoleónicas a Portugal, o autor intitula um capítulo “A Fuga”, onde insere o seguinte trecho que, como muitos outros da sua autoria, se tornaram para sempre actuais:

“Quem pudesse ir remexer no fundo das gavetas da época, ler as correspondências e as contas, raspar nas almas e nas bolsas, com os seus múltiplos interesses!… Ao lado da história, das frases, das leis, dos factos, há outra história mais viva e humana, oculta e terrível, a do oiro e da ganância. Dum lado o que se mostra, a pompa, o cenário, do outro, o Deve e Haver. Contas. O sórdido interesse – com resultados inesperados, às vezes. A mola-real, o dinheiro, os papéis esquecidos no fundo das gavetas dos ministros, os livros dos diplomatas, os documentos e as cifras. Vêem-se os homens hábeis e polidos na culminância do poder, os artigos discutidos parágrafo a parágrafo, as conferências, os aposentos solenes, a mesa hirta com os papéis e o tinteiro em cima – mesuras, relatórios, fardas – não se vê o oiro que corre de bolso para bolso, nem as consciências que amolecem, nem as algibeiras sem fundo – nem a vida secreta. E esta história seca, a dos interesses e dos vícios, é a verdadeira história dos últimos anos, nervosa, descarnada – diabólica. Por trás do pano aparatoso, com o arranjo que cada um lhe desenha – até com sinceridade – não cessa o ruído irresistível do dinheiro”.
Nota: Existe uma edição de 1982 de El-Rei Junot, publicada pela Imprensa Nacional, na colecção Biblioteca de Autores Portugueses.

domingo, 3 de junho de 2012

Rocha Loureiro, As ideias de liberdade...


No dia 3 de Junho de 1822, faz hoje 190 anos, D. Pedro publicou, no Brasil, um Decreto convocando uma Assembleia constituinte e legislativa.
João Bernardo da Rocha Loureiro, no seu Memorial a D. João VI, escreveu, em 1824:

“Longos meses há, escrevi eu para o público (e V.M., que faz a boa obra de ler os jornais, acaso terá visto) que o Brasil, colocado no centro de duas grandes revoluções, uma consolidada ao norte da América, outra fermentando em todos os pontos de contacto com o Brasil e não longe de se consolidar, mal podia deixar de haver parte nas oscilações desses terramotos políticos. O mal era de arrecear, pois as ideias de liberdade, como têm por fundamento a natureza e os desejos do coração, propagam-se com a rapidez do relâmpago e daí vem que os governos despóticos as caracterizam como doença política mais contagiosa do que a febre amarela”.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Congresso dos combatentes, O primeiro passo...


No dia 1 de Junho de 1973, faz hoje 39 anos, teve início, no Porto, o Congresso dos Combatentes, que seria contestado, através de um abaixo-assinado, por cerca de 400 oficiais das Forças Armadas. Nesta época difícil, as correntes mais radicais do Estado Novo consideraram indispensável a realização de um congresso de combatentes, com o fim de reafirmar a continuação da política ultramarina do regime, definindo um compromisso sem transigências nem aberturas. Os promotores do congresso sabiam que existia, em alguns sectores das Forças Armadas, uma vontade de questionar as soluções do regime para o problema ultramarino e a continuação da guerra.
O “Congresso dos Combatentes do Ultramar” fez-se em nome da “grandeza e unidade de Portugal”e os seus promotores apresentaram como ideia forte - “Não seremos a geração da traição”.
O Congresso era, antes de mais, um aviso a Marcelo Caetano que, não tendo outra saída que não fosse apoiá-lo, tomou as suas cautelas para a reunião não surgir como uma manifestação extremista. Para controlar esta facção do regime envolveu os membros do governo e promoveu, através de Sá Viana Rebelo, ministro da Defesa, a nomeação do prudente e respeitado general António Augusto dos Santos para presidente do Congresso.
Ainda com a intenção de arrefecer os ânimos mais exaltados, foram os comandantes-chefes dos teatros de operações incentivados a enviarem delegações de militares, incluindo do quadro permanente, ao Congresso.
Em Angola esteve constituída uma delegação e na Guiné, num primeiro momento, em Fevereiro/Março, no regresso de uma viagem a Lisboa, Spínola também estava disposto a enviar militares ao Porto.
O assunto do Congresso dos Combatentes tinha entretanto começado a ser discutido entre os oficiais do núcleo que daria origem ao movimento dos capitães na Guiné e que se reuniam no Agrupamento de Transmissões e no Grupo de Artilharia, sendo clara e cada vez mais ampla a oposição à participação no que aparecia aos olhos de todos como uma forma de pressão sobre o governo para continuar a guerra.
Efectivamente, na Guiné viviam-se tempos favoráveis ao debate. Pelo seu clima, pelo seu tamanho, pela acção e propostas políticas de Spínola, pela guerra conduzida pelo PAIGC, de forma mais aberta ou mais reservada a contestação ao Congresso floresceu e a reacção e repúdio dos oficiais do quadro permanente ao “Congresso dos Combatentes do Ultramar” transformou-se na primeira pedrada no charco, na Guiné-Bissau.
A Comissão Organizadora do Congresso mandou dois elementos de Lisboa a Bissau, o tenente-coronel Caçorino Dias, oficial de cavalaria e deficiente de guerra e o ex-alferes miliciano Nuno Cardoso da Silva, para tentarem convencer os oficiais da Guiné da bondade do Congresso e das vantagens da presença de uma delegação.
Numa longa reunião realizada na sede do Programa de Informação das Forças Armadas (PIFAS), os oficiais da Guiné expuseram a situação e a falta de sentido de defender as posições que estavam na origem do Congresso. Como resultado desta discussão, Caçorino Dias demitiu-se da organização.
A movimentação com recolha de assinaturas entre os oficiais em serviço na Guiné, que veio a atingir 400, foi um excelente pretexto para os consciencializar e para os preparar para as contestações seguintes. No dia da abertura do Congresso foi enviado de Bissau um telegrama assinado por Marcelino da Mata e Rebordão de Brito, os dois oficiais naturais da Guiné e condecorados com a“Torre e Espada”, a mais alta condecoração portuguesa e com o seguinte texto:

“Cerca de quatro centenas de oficiais dos quadros permanentes e combatentes do Ultramar com várias comissões de serviço, certos que interpretam o sentir de outras centenas de camaradas que, por motivos de circunstâncias múltiplas, ignoram verdadeiramente o Congresso, desejam informar V.Ex.as e esclarecer a Nação do seguinte:
1. Não aceitam outros valores nem defendem outros interesses que não sejam os da Nação;
2. Não reconhecem aos organizadores do I Congresso dos Combatentes do Ultramar, e portanto ao próprio Congresso, a necessária representatividade;
3. Não participando nos trabalhos do Congresso, não admitem que pela sua não participação sejam definidas posições ou atitudes que possam ser imputadas à generalidade dos combatentes;
4. Por todas as razões formuladas se consideram e declaram totalmente alheios às conclusões do Congresso, independentemente do seu conteúdo ou da sua expressão”.
(…)
Solicita-se que ao presente telegrama seja dada publicidade igual à utilizada para as conclusões do Congresso”.

Em Lisboa o descontentamento dos oficiais deu também origem a um movimento de contestação, encabeçado por oficiais que tinham feito comissões na Guiné. Num momento em que, sobretudo na Guiné, os confrontos se agravavam, e o desgaste provocado pelo esforço de guerra se reflectia perigosamente no moral das tropas, aos olhos de muitos começava a ser óbvio que o governo aceitaria mais facilmente uma derrota militar do que a cedência perante os movimentos de libertação. O espectro do caso da Índia era preocupante, temendo-se que, uma vez mais, as Forças Armadas fossem responsabilizadas pelos erros políticos do regime e pela sua estratégia colonial. A mobilização em torno da contestação ao Congresso dos Combatentes acabou por patentear um clima de mal-estar que se começava a instalar no interior das Forças Armadas e o elevado número de assinaturas reunidas em apenas alguns dias em Bissau e em Lisboa são disso o sinal incontestável.
Para camuflar o fracasso em que o Congresso se transformara e para evitar expor o agravamento das fracturas no seio das forças armadas e do regime, Sá Viana Rebelo, ministro do Exército e da Defesa, proibiu a participação dos oficiais no activo. Com esta decisão transformou o Congresso numa reunião ao nível das que a Legião Portuguesa costumava realizar.

Ver: Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, Os Anos da Guerra Colonial. Porto, Quidnovi, 2010, pp. 727-728.