domingo, 20 de maio de 2012

Raul Proença, Esta palhaçada ignóbil da liberdade a conta-gotas…


Em 1908, há portanto 104 anos, Raul Proença publicou em O Republicano um texto sobre a liberdade de imprensa que, como tantos outros textos seus e de outros grandes pensadores portugueses, não perdeu oportunidade e é sempre conveniente não esquecer. Os anos passam, mas o campo de luta entre os que amam a liberdade e os que conspiram para a aniquilar parece manter-se inalterado. A parte essencial do texto, com o título Liberdade, é a seguinte:

“A liberdade, ou não é uma palavra vã e deve dar-se-lhe toda a extensão que ela comporta, ou é uma mistificação, um embuste, e então não precisamos dela, porque antes o franco absolutismo, opressor e valente, que esta palhaçada ignóbil da liberdade a conta-gotas que no nosso regime constitucional se tolera. A liberdade da imprensa é uma das liberdades mais essenciais ao progresso de uma nação. Sem liberdade de imprensa, não há regularidade, não há moralidade governativa, não há elementos de civilização.
A imprensa é o facho de luz que deve iluminar todos os problemas: através dela devem passar todos os dias, como por momentos passam todos os acontecimentos pelo quadro de um cinematógrafo, os grandes factos sociais, a crítica de todas as doutrinas, a exposição de todas as teorias, a discussão de todos os problemas. Luz viva, explendente, eléctrica; as almas, ao aproximarem-se dela, devem penetrar-se de uma claridade infinita, como se fossem banhar-se em ondas de Razão e de Justiça. A imprensa visa a servir a causa nacional e a contribuir para o progresso social. Sem liberdade, mas ampla e absoluta liberdade, impossível tudo isso: é como se, de vez em quando, adiante de um quadro cinematográfico, profundamente natural, da agitação fervorosa da vida, um severo polícia de chanfalho, ou um inquisidor de barba se perfilasse rigidamente, para impedir a visão das coisas aos espectadores.
Regime sem discussão é regime morto: é um regime que não tolera a luz; quer viver às escuras, no silêncio morno e na morta obscuridade de uma campa de cemitério. Não quer as janelas da imprensa abertas, porque não quer que cá para fora saia o cheiro revelador da estrumeira de almas que lá dentro fermenta. Um poder vigoroso não teme a discussão, não morre com ela: pelo contrário, vive dela, serve-se dela. Quem tem a consciência branca nada teme; quem age com sinceros intuitos só tem a lucrar com a discussão, que nos contras poderá confirmar os prós de um princípio, pela sua inutilidade, ou pode encaminhar para a verdade os cérebros que têm enveredado pelo erro. Que nos discutam, pois: só com isso lucraremos; que nos critiquem: os erros notados forçar-nos-emos por emendá-los e as calúnias escritas acabaremos por desfazê-las. Diga-se tudo, fale-se sobre tudo: nada, absolutamente nada deixe de interessar o agudo bisturi da análise jornalística; que ela escalpele todos os vícios de administração e a uma luz muito intensa e muito viva, apostolicamente, serenamente, inexoravelmente, vá marcando a ferro em brasa os crimes do Poder e vá nimbando de auréolas as cabeças dos heróis. Nada escape ao seu exame: política, ensino, religião, economia, administração, higiene, literatura, casamento. A imprensa é a história do dia de hoje: quem tenta impedir que ela se faça com esse rigor, essa imparcialidade e essa justiça que produzem a verdade é um ferrenho inimigo da civilização.

Nota: Faz hoje 71 anos que Raul Proença morreu (20-05-1941). A publicação deste texto é também uma homenagem à sua vida e à sua luta.

sábado, 19 de maio de 2012

Alexandre Vieira, A jornada de oito horas…


Em 7 de Maio de 1919, fez recentemente 93 anos, foi estabelecida por lei (Decreto 5516), a jornada diária de oito horas de trabalho. Alexandre Vieira, então director de A Batalha, que depois viria a ser órgão da Confederação Geral do Trabalho (também criada em 1919), escreveu, a propósito, um pequeno texto com o título “Sobre o dia normal das 8 horas”, mais tarde incluído no seu livro Para a História do Sindicalismo em Portugal. Transcreve-se como homenagem, memória e lembrança de quem não devia ignorar, nem esquecer:

“A despeito das reiteradas tentativas feitas pelos representantes das associações comerciais e industriais, no intuito de conseguirem evitar que o regulamento das oito horas entrasse em vigor, não viram aqueles excelsos varões coroados de êxito os seus desesperados esforços.
O regulamento, mau-grado seu, começou efectivamente a adoptar-se, e essa regalia só não será absolutamente respeitada se porventura houver trabalhadores que, contra o que esperamos, se submetam docilmente a possíveis pressões de alguns industriais ou comerciantes, na certeza de que não deixará de haver patrões que hão-de tentar, num último esforço, anular essa regalia que, não há dúvida, vai abranger um grande número de salariados, embora algumas das mais importantes classes, como as dos trabalhadores rurais e ferroviários, tenham sido excluídas da lei, não sabemos por que estreito critério.
Disse-se que os magnates do comércio e da indústria, no propósito de impedirem a todo o transe que o regulamento entrasse em vigor, pretendiam encerrar os respectivos estabelecimentos, o que seria um espectáculo curioso. Mas, reflectindo, parece que desistiram desse intuito, certamente convencidos de que um tal gesto da sua parte poderia dar lugar a acontecimentos sérios em que decididamente as tais forças vivas, como só por irrisão temos visto cognominar pesos mortos, não representariam um papel agradável.
Não realizam os sindicatos patronais o anunciado lock-out, mas temos fundadas razões para supor que não desistirão de fazer a máxima oposição ao cumprimento da lei, facto este que o seu descomunal egoísmo e o seu vivo reaccionismo não aceitam de boa mente, porque no cérebro ancestral dessa gente não há lugar à receptividade de princípios novos, nem a obcecação do seu espírito permite esperar deles - e os factos o atestam - uma inteligente transigência com as conquistas do momento presente.
Quer isto dizer que o proletariado deve estar de atalaia e disposto a tornar eficiente, pela sua própria acção, a disposição legal que, sendo o produto da propaganda operária, só será respeitada se os trabalhadores a quem ela atinge souberem impedir, por uma acção combinada, possíveis mistificações ou quaisquer coacções.
Iludem-se aqueles que supõem que as entidades oficiais, no caso de um presumível ataque à regalia que vem de ser sancionada pelo Estado, repelirão esse ataque por intermédio dos seus múltiplos agentes.
Não tenha o operariado confiança em que tal suceda, porque a experiência ensina-nos que os órgãos governamentais só são rigorosos quando se trata de combater os trabalhadores. Sempre que são os poderosos a claudicar, os olhos oficiais nada vêem. E a comprovar esta asserção está o facto de os governantes e os seus agentes, tão severos em regra para com os que produzem, o não serem para com as tais forças vivas, ainda quando elas, como presentemente, promovem, pela escassez de géneros e pela sua carestia ou falsificação, uma vida insuportável.
Confiemos, portanto, apenas no próprio esforço”.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Conferências do Casino, Abrir uma tribuna...


No dia 16 de Maio de 1871, faz hoje 141 anos, foi apresentado o Manifesto sobre as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, que acabariam proibidas antes de terminarem. A Revolução de Setembro publicou o Manifesto logo no dia 18.
Realizaram-se as seguintes conferências:
- Antero de Quental, "Causa da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos";
- Augusto Soromenho, "Literatura portuguesa contemporânea";
- Eça de Queiroz, "A arte";
- Adolfo Coelho, "A questão do ensino".
A quinta conferência já não pôde ser apresentada, porque o governo do marquês de Ávila e Bolama proibiu as Conferências.

Eis o texto do Manifesto:
“Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação política, e todos pressentem que se agita, mais forte que nunca, a questão de saber como deve regenerar-se a organização social.
Sob cada um dos partidos que lutam na Europa, como em cada um dos grupos que constituem a sociedade de hoje, há uma ideia e um interesse, que são a causa e o porquê dos movimentos.
Pareceu que cumpria, enquanto os povos lutam nas revoluções, e antes que nós mesmos tomemos nelas o nosso lugar, estudar serenamente a significação dessas ideias e a legitimidade desses interesses; investigar como a sociedade é, e como ela deve ser; como as nações têm sido, e como as pode fazer hoje a liberdade; e, por serem elas as formadoras do homem, estudar todas as ideias e todas as correntes do século.
Não pode viver e desenvolver-se um povo isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando deve também ser o assunto das nossas constantes meditações.
Abrir uma tribuna aonde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este momento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; Procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência modernas;
Estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa;
Tal é o fim das conferências democráticas.

Lisboa, 16 de Maio de 1871. – Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queiroz, Germano Vieira Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, J.P. Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sáraga, Teófilo Braga.
Será segunda-feira, 22 do corrente, às 9 horas da noite, a primeira conferência; seguindo-se as outras todas às segundas-feiras, à mesma hora. Entrada 100 réis”.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Miguel Torga, O povo não diz nada...


No dia 15 de Maio de 1969, faz hoje 43 anos, iniciou-se o II Congresso Republicano de Aveiro, onde estiveram presentes muitas centenas de oposicionistas, sob fortes medidas de segurança e vigilância. Miguel Torga também esteve presente e escreveu, no seu Diário, e a propósito, estas palavras que só um poeta consegue fazer perdurar:

"Aveiro, 16 de Maio de 1969 – Congresso republicano. Mal entrei na sala e me sentei, aproximou-se um jornalista a pedir uma palavra para o seu jornal. E desiludi-o:
- Desculpe, mas estou aqui como povo, e o povo, em Portugal, não diz nada”.

domingo, 13 de maio de 2012

Maria Rattazzi, São uns gatunos!


Em 1879, há portanto 133 anos, a editora Dgorcet-Cadot de Paris publicou um livro da autoria da Princesse Ratazzi com o título Le Portugal à vol d’oiseau e o subtítulo Portugais et Portugaises. Maria Rattazzi, cujo nome de família era Maria Letizia Studolmire Wyse nasceu na Irlanda e era sobrinha-neta de Napoleão. Durante algum tempo adoptou o apelido do segundo marido, Urbano Rattazzi. Esteve em Portugal em 1876 e em 1879, onde conviveu com muitas figuras da política e da cultura. Logo em 1881 foi o seu texto publicado em Portugal, com o título Portugal de Relance, mas ainda em 1880, Antero se referiu ao texto publicado em França, em carta para João Lobo de Moura: “A Rattazzi, que passou dois Invernos a desfrutar os literatos de Lisboa, publicou agora um livro sobre Portugal, delicioso. Imagine uma parisiense descrevendo ao vivo, estes mirmidões. Não se fala noutra coisa e está tudo furioso”.
Trata-se de um magnífico retrato de Portugal e, em especial, da Lisboa deste tempo. Destacamos do texto alguns parágrafos sobre a análise de aspectos económicos, que parece não terem perdido actualidade:

“Há em Lisboa uma Bolsa. (…)
A Bolsa está situada na Praça do Comércio, numa das extremidades, à beira do Tejo. Se o que perdeu a fortuna tiver desejos de se deitar a afogar, não precisa ir longe. (…)
Da Bolsa aos bancos, o caminho não é longo. Porque, se os bancos não fazem parte da mesma família de negócios clandestinos ou públicos, têm pelo menos suas afinidades. É talvez por este parentesco que há tão grande quantidade de bancos em Portugal. (…)
Poder-se-ia crer que o comércio de Lisboa e de Portugal, aproveitando-se de tantos bancos, encontraria neles um pouco de crédito. Profundo erro! Os negócios, em lugar de prosperar, vão de mal a pior, especialmente para o pequeno comércio.
Por fim do ano de 1878, e por espírito de imitação, o Banco Ultramarino expiou, como o Banco de Bruxelas, as leviandades de uma péssima administração e o abuso de um guarda-livros, de um exército de empregados e de directores que meteram a mão nas algibeiras… dos outros, postas sob a sua salvaguarda. No dia imediato ao do desastre, o tesouro público punha à disposição do Banco Ultramarino a soma de dois milhões de francos, o dobro do desvio de fundos. Aqui temos guarda-livros, tesoureiros, empregados e directores que vão ao banco dos réus responder perante a justiça – se a justiça intervier no caso – por factos que lhes imputam, e o governo corre em auxílio do cofre despojado! Porquê?... Por que razão?... Como é que os dinheiros do Estado têm que ver com uma sociedade constituída por accionistas, de entre os quais alguns grandes e minúsculos empregados são uns gatunos? E com que direito aqueles que administram os dinheiros públicos, aos quais as Cortes consignaram destino especial, podem aplicá-los em socorrer um banco em falência?... Questões importantes em toda a parte, mas que seriam aqui impertinentes”.

Nota: A editora Antígona publicou, em 2004, uma 2ª edição do texto de Maria Rattazzi.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Humberto Delgado, Demito-o, obviamente…



No dia 10 de Maio de 1958, faz hoje 54 anos, o general Humberto Delgado deu uma conferência de imprensa no salão de chá do Café Chave de Ouro, em Lisboa, como candidato independente à Presidência da República.

Encontravam-se na sala dezenas de representantes da imprensa portuguesa e estrangeira, mas as emissoras de rádio e a Televisão Portuguesa não se fizeram representar. O Prof. Vieira de Almeida apresentou “As razões da independência da candidatura do general Humberto Delgado”, referindo que o candidato “não procura o apoio de partido algum nem o representa, antes aceita o apoio que lhe tragam todos os homens de boa vontade”, apresentando-se apenas armado do seu direito de cidadão eleitor e elegível.
Nas suas palavras, o general Humberto Delgado disse, a certa altura, que “a decisão de apresentar esta candidatura é tanto mais meritória quanto é certo que as condições são nitidamente desfavoráveis. Não há subterfúgios que inutilizem esta verdade singela. Só com cartas de eleitor e fiscalização plena, uma eleição pode considerar-se moralmente válida. De contrário, não, e não. É um intervalo mesquinho de… generosa autorização para propaganda política que faz lembrar impressionantemente a autorização dada aos presos para um passeio periódico, debaixo de formas, ao ar livre, no pátio da clausura.”

Quando terminou as suas palavras o general foi aplaudido e ouviram-se vivas a Portugal, à Liberdade e à República.

O general pôs-se, então à disposição dos jornalistas.
A primeira pergunta veio de imediato:
- Se for eleito Presidente da República, que fará do Sr. Presidente do Conselho?
E a resposta foi simples e imediata:
- Demito-o, obviamente…

A conferência continuou, mas só esta frase ficou para a História…

O general Humberto Delgado pagou com a vida o desafio ao ditador!

terça-feira, 8 de maio de 2012

Alves Redol, Isso é que eram tempos!


Os Reinegros, romance de Alves Redol, foi publicado em 1972, três anos depois da sua morte. O ambiente gira em torno da transição da monarquia para a república e da consolidação do novo regime.
O autor coloca este diálogo nas vésperas da implantação da República, há portanto cerca de 103 anos, e bem poderemos nós colocá-lo em outro tempo, pois há textos (e autores) que permanecem para sempre:

“O Sr. Almeida andava cada vez mais fona e a sua rabugice satisfazia-se obrigando os empregados a trabalhar sem conta. Inventava serviços para não os ver parados, ainda inconformado com o descanso que, desde meados de 1907, lhes tinha de conceder, relembrando, a propósito de tudo e de nada, o início da sua carreira comercial.
- E isso é que eram tempos. O patrão era mais do que um pai. Não se dava um passo sem lhe pedir um conselho e havia respeito e disciplina. O respeito é uma coisa muito bonita, fique sabendo. Quando o patrão falava, o empregado punha os olhos no chão e ouvia tudo; e levava a sua estalada a tempo, se isso era preciso, nem que tivesse ido já à vida militar. Assim é que se faziam homens para o balcão. Um empregado, quando saía duma casa, sabia tudo o que era preciso para ser um bom comerciante. Poupado, trabalhador... Agora?!... Pedem descanso ao domingo depois do almoço, se têm de fazer serão até às duas horas já mostram má cara e até conspiram contra o regime. Eu bem percebi na cara dos meus a satisfação pelo crime do Terreiro do Paço. Regicidas!
- Mais a grande maioria dos comerciantes é republicana, lembravam-lhe alguns amigos a quem falava do desaforo.
- Andam todos enganados. Se eu viver, hão-de dizer-me quem tem razão. Olá se hão-de! Mas já será tarde... Que o regime está firme! O regime não precisa do povo para coisa nenhuma. Pessoas de bem e de respeito é que se querem com a causa. Mas, apesar disso, irrita-me... Lembro-me do tempo em que o patrão entregava o voto e o empregado obedecia. E, se não obedecesse...".