terça-feira, 24 de janeiro de 2012

As leis e a realidade!


A Revista Militar de Maio de 1914, vai fazer portanto 98 anos, publicou um artigo de um desconhecido tenente de infantaria, Luís do Nascimento Dias, intitulado “O Regulamento e a Circular”, que bem podia interpretar-se como o símbolo da nossa forma de legislar, neste e em outros tempos… Deixo alguns trechos que espelham, não só a confusão do nosso autor, mas também a de todos quantos algum dia tiveram de desembaraçar-se, no meio das referidas leis, regulamentos e circulares:

“Um dos obstáculos que mais persistentemente tem entravado o desenvolvimento progressivo do nosso Exército, tem sido... a vontade de o desenvolver e aperfeiçoar.
Parecerá, ao primeiro relance, um contra-senso. Mas quem olhar com cuidado, detendo-se a observar, com sossego, o funcionamento, em todos os seus detalhes, deste complicado organismo; quem o analisar, através da luz clara e pura da verdade, desde a mais ínfima das suas manifestações à mais complexa das suas variadas funções; quem, alheio a quaisquer paixões e despido de interesses de qualquer ordem, balançar a vida militar do nosso País, verificará quanta razão ressuma desta minha afirmativa em que eu sublinho toda a firmeza da minha convicção, em palavras mal alinhavadas e descoloridas, mas calcadas na sinceridade e na franqueza com que costumo esmaltar a minha maneira de ver, que eu apresento envolta no entusiasmo e no amor que me despertam as coisas militares, para com eles suprir a escassez de merecimentos e a elegância de frase, que não tenho. (...)
A vontade de desenvolver e de aperfeiçoar o nosso Exercito na pressa, ainda maior, de ver o organismo militar transformado de um dia para o outro, fê-lo mergulhar profundamente numa onda enorme de papelada, de que só tardiamente poderá desembaraçar-se e que, amontoando-se a granel, dia a dia e sem método não poderá entrar resolutamente em vigor, sem que o nosso espírito, corajoso e decidido, se disponha a trinchar esse montão enorme de regulamentos e de circulares que têm aparecido de tropel, na velocidade, talvez demasiada com que se têm remodelado todos os seus serviços, e na persuasão, talvez enganosa, em que todos nós estamos, supondo que para um Exército se fortalecer e instruir, nada mais será preciso do que pôr na rua… um batalhão de regulamentos ou fazer evolucionar um contingente… de circulares. (...)
Desta forma, têm-se publicado regulamentos e mais regulamentos e, como infelizmente a maioria deles vêm incompletos e falhos de clareza, logo uma saraivada de circulares lhes cai em cima, em cataplasmas de alterações que, a maior parte das vezes, os baralha e confunde ainda mais e, dentro em breve, tudo se engalfinha na nossa memória num rebuliço infernal, em que as circulares saltitando de um lado para o outro se vão azagaiando umas às outras ou abrindo brecha nos próprios regulamentos, tudo numa confusão diabólica a que, em geral, se procura pôr termo reforçando, a toda a pressa, com mais um esquadrão de... regulamentos ou mandando avançar para o arquivo mais, um punhado de... circulares. (...)
Regulamentos!... Circulares!...
Não se calcula o mal enorme que estes dois terríveis flagelos têm produzido, e a série de dificuldades a que tantas vezes nos obrigam na impossibilidade de cumprir algumas das suas prescrições que, por não estarem suficientemente esclarecidas ou por não serem de fácil execução, vão dando origem a interpretações variadas e a dúvidas constantes que, dia a dia vão complicando, cada vez mais, os serviços que se propunham aligeirar e à sombra dos quais vivem e medram, sem outro proveito do que transtornar a linha inflexível e rígida que é necessário manter em todas as manifestações de vida deste complicado organismo. (...)
Conhecemos suficientemente o nosso feitio e o nosso temperamento, e receamos que toda essa legislação, todos esses regulamentos, todas essas circulares, atiradas para o monte, umas após outras, sem cessar, sem interrupção fiquem, por muito tempo, fechadas a sete chaves no armário do esquecimento...”.

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