quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Oliveira Martins, Os direitos políticos do soldado


Em 1882, há portanto 129 anos, Oliveira Martins escreveu, no Diário do Exército, um texto intitulado "A disciplina militar e os direitos políticos do soldado", do qual extraio alguns excertos:

"(...)
É nisto pois que a nossa época se diferencia da precedente. Hoje, dado um movimento que agite as instituições de uma nação, não se discute a investidura do poder, debate-se o próprio princípio da autoridade. Ora, numa questão de tal modo íntima, vital, orgânica, pode negar-se o voto ao soldado? E não dizemos o voto no sentido do exercício da delegação electiva da representação. Dizemos o voto no sentido de opinião, de crença, de entusiasmo, de dedicação pela sorte e pelo futuro da sua terra e dos seus. Pode negar-se ao soldado o direito de intervir no debate acerca do destino de uma sociedade da qual, embora soldado, faz parte? Pode exigir-se-lhe que fique reduzido à condição de autómato, manequim armado, sem mais vida de que outra qualquer máquina de guerra inanimada?
Todavia, por outro lado, se se reclamar que o cérebro pense e o coração bata, como dizia  o antigo panfletário, esse cérebro, esse coração hão-de dirigir o braço que a sociedade armou, e as armas confiadas ao soldado poderão ser como um instrumento matricida.
Neste momento do discurso, põe-se hoje por via de regra ponto na questão, e em geral opina-se contra a primeira das duas teses que enunciei, e a favor da segunda. Estará, porém, analisado o problema completamente? Parece-me que não (...)
De que modo, pois, se pode resolver a antítese? Por que maneira forte e digna pode o soldado obedecer a ordens que vão de encontro à sua opinião? Em virtude de que princípio orgânico se concilia a disciplina indispensável aos corpos armados, com os ditames não menos imprescritíveis da razão e da consciência, quando apareça um conflito?
Em nosso entender, a antinomia resolve-se numa esfera superior à disciplina e à consciência individual. A milícia é para mim como uma magistratura - mais ainda, como um sacerdócio.
É uma função eminentemente social, e representa como tal a ordem moral de uma nação.
O sacerdote, o magistrado, o soldado são indivíduos que têm de sacrificar-se a si, às suas opiniões, aos seus sentimentos e inclinações, a uma razão de Estado, a um princípio de ordem superior aos motivos de qualquer padre, de qualquer juiz, de qualquer soldado, considerados como indivíduos.
É essa moral que chamamos colectiva a que absolve o padre de pecar contra a natureza sendo celibatário, sem esposa, sem filhos; é ela que absolve o juiz quando sentenciando um homem à morte, sente o seu coração protestar; é ela que absolve o soldado quando de arma ao ombro vai cumprir uma ordem cruel - combater porventura contra um irmão!
Entretanto há um limite para o sacrifício; esse marca-o a consciência. Nenhuma espécie de moral colectiva pode obrigar pessoa alguma a praticar um acto em que a consciência lhe denuncie um crime. Possa embora a consciência errar! Mas para cada um de nós, homens - e o soldado é homem - ela é o nosso supremo juiz. Em tal caso o máximo sacrifício possível é abafar o protesto, conquistando com a demissão a liberdade".

Sem comentários:

Enviar um comentário