Raul Brandão publicou o seu livro El-Rei Junot em 1912, faz agora 100 anos. Depois de largamente referir o ambiente que antecede a iminência da chegada das tropas napoleónicas a Portugal, o autor intitula um capítulo “A Fuga”, onde insere o seguinte trecho que, como muitos outros da sua autoria, se tornaram para sempre actuais:
“Quem
pudesse ir remexer no fundo das gavetas da época, ler as correspondências e as
contas, raspar nas almas e nas bolsas, com os seus múltiplos interesses!… Ao
lado da história, das frases, das leis, dos factos, há outra história mais viva
e humana, oculta e terrível, a do oiro e da ganância. Dum lado o que se mostra,
a pompa, o cenário, do outro, o Deve e Haver. Contas. O sórdido interesse – com
resultados inesperados, às vezes. A mola-real, o dinheiro, os papéis esquecidos
no fundo das gavetas dos ministros, os livros dos diplomatas, os documentos e
as cifras. Vêem-se os homens hábeis e polidos na culminância do poder, os
artigos discutidos parágrafo a parágrafo, as conferências, os aposentos
solenes, a mesa hirta com os papéis e o tinteiro em cima – mesuras, relatórios,
fardas – não se vê o oiro que corre de bolso para bolso, nem as consciências
que amolecem, nem as algibeiras sem fundo – nem a vida secreta. E esta história
seca, a dos interesses e dos vícios, é a verdadeira história dos últimos anos,
nervosa, descarnada – diabólica. Por trás do pano aparatoso, com o arranjo que
cada um lhe desenha – até com sinceridade – não cessa o ruído irresistível do
dinheiro”.
Nota: Existe
uma edição de 1982 de El-Rei Junot, publicada pela Imprensa Nacional, na
colecção Biblioteca de Autores Portugueses.
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