Em Maio de 1973, faz agora 39 anos, a situação militar na Guiné passou por um quadro gravíssimo, uma situação crítica para as Forças Armadas portuguesas, perante várias grandes ofensivas do PAIGC. Como declarou Spínola, comandante-chefe e governador-geral do território: “Encontramo-nos indiscutivelmente na entrada de um novo patamar da guerra, o que necessariamente impõe o reequacionamento do trinómio missão-inimigo-meios”.
Vejamos os principais acontecimentos deste mês de Maio de 1973:
Dia 5 - Reunião de comandos militares em Bissau para apreciação da situação militar, em que se procuraram estabelecer as possibilidades do inimigo - intensificar a acção antiaérea, em ordem a retirar-nos a liberdade de acção no ar; incrementar a acção da guerrilha em ataques a aquartelamentos e emboscadas a colunas; massificar as acções contra as povoações com guarnição militar, em ordem a obter sucessos politicamente exploráveis; intensificar a resistência à reocupação do Sul (Cantanhez); incrementar a sua actividade contra meios navais; tentar a eliminação sistemática de guarnições mais expostas sobre a fronteira; estabelecer no Boé a fisionomia de um novo Estado, a proclamar; consolidar as bases de uma ulterior evolução do conflito para a fase convencional.
Spínola resumiria esta análise do seguinte modo: “afiguram-se-nos manifestamente insuficientes os meios actuais face à evolução verificada, pois considero demonstrada à evidência a impossibilidade de alterar a manobra para economizar meios sem grave prejuízo da missão”.
Dia 8 - Início de uma ofensiva de envergadura do PAIGC contra Guidage, unidade situada junto à fronteira com o Senegal. Para garantir a defesa de Guidage, o Comando-chefe da Guiné teve que enviar para a zona um conjunto elevado de unidades e tropas especiais, Comandos, Pára-quedistas e Fuzileiros, bem como unidades de artilharia e de cavalaria. A guarnição local, quando começou o cerco, era constituída por uma companhia de caçadores e por um pelotão de artilharia, equipado com obuses de 10,5cm num total de 200 homens, a maioria do recrutamento local.
Na operação de auxílio, reabastecimento e contra-ofensiva, que durou de 8 de Maio a 8 de Junho de 1973, estiveram envolvidos mais de mil homens (na maioria tropas especiais) das Forças Armadas portuguesas. As forças portuguesas sofreram 39 mortos e 122 feridos. Pelo menos seis viaturas militares de vários tipos foram destruídas e foram abatidos três aviões, um T6 e dois DO-27. Só a guarnição de Guidage contabilizou sete mortos e 30 feridos. Nos cerca de 20 dias que ficou cercada esteve sujeita a 43 ataques com foguetões de 122mm, artilharia e morteiros. Todos os edifícios do quartel foram danificados.
A unidade que, no conjunto, teve mais mortos foi o Batalhão de Comandos, 10 no total. Sofreu ainda 22 feridos, quase todos graves, e três desaparecidos.
O isolamento de Guidage iniciou-se com o abate de um avião T6, duas DO-27 e o cerco terrestre acentuou-se em 8 de Maio quando uma coluna que partiu de Farim accionou uma mina e foi emboscada, sofrendo 12 feridos. Foi obrigada a regressar à base de partida.
A 9 de Maio a mesma força foi de novo emboscada, mantendo-se em combate por quatro horas e sofrendo quatro mortos, oito feridos graves, 10 feridos ligeiros e quatro viaturas destruídas. A coluna dirigiu-se para Binta em vez de seguir para Guidage.
A 10 de Maio, no deslocamento Binta/Guidage, as unidades envolvidas sofreram um morto e dois feridos, encontrando a picada cortada por abatises. Uma coluna que tinha saído de Guidage (CCaç 19) para proteger o itinerário sofreu cinco emboscadas, de que resultaram oito mortos e nove feridos.
A 12 de Maio chegou a Guidage uma coluna de reabastecimento constituída pelos Destacamentos de Fuzileiros 3 e 4. A 15 de Maio, no regresso dos fuzileiros a Farim, as forças portuguesas accionaram duas minas sofrendo dois feridos graves e uma emboscada entre Binta e Guidage de que resultaram cinco feridos.
O PAIGC ameaçava isolar completamente Guidage, dados os campos de minas lançados, as emboscadas montadas e a impossibilidade dos meios aéreos actuarem, devido ao dispositivo antiaéreo montado com os mísseis Strela.
Dia 17 - Início da operação "Ametista Real", em que o Batalhão de Comandos da Guiné assalta a base de Cumbamori, do PAIGC, situada em território do Senegal. A operação destinava-se a aliviar o cerco do PAIGC a Guidage e a permitir o reabastecimento daquela guarnição. De facto, só a destruição da base de Cumbamori, a grande base do PAIGC no Senegal, na península do Casamança, permitiria pôr fim ao cerco a Guidage. A operação era difícil e de resultados imprevisíveis. O ataque ao Senegal foi atribuído ao Batalhão de Comandos Africanos, comandado pelo major Almeida Bruno – que tinha por hábito atribuir às acções militares o nome de pedras preciosas: esta ficou ‘Operação Ametista Real’.
Na tarde de 19 de Maio de 1973, uma sexta-feira, 450 homens do Batalhão de Comandos Africanos embarcaram em lanchas da Marinha e subiram o rio Cacheu até Bigene, onde chegaram ao pôr-do-sol. À meia-noite a força de ataque seguiu dividida em três grupos de combate - o Agrupamento Bombox, comandado pelo capitão Matos Gomes, o Agrupamento Centauro, sob o comando do capitão Raul Folques e o Agrupamento Romeu, comandado pelo capitão pára-quedista António Ramos.
O comandante da operação, Almeida Bruno, seguiu integrado no Agrupamento Romeu, que levava um grupo especial comandado por Marcelino da Mata.
Avançaram durante a madrugada e pisaram território senegalês cerca das seis da manhã do dia 20, sábado.
Às oito horas, uma esquadrilha de aviões Fiat iniciou pesado bombardeamento da zona. Os pilotos atacaram um pouco às cegas, porque a exacta localização da base da guerrilha não era conhecida. Mas por sorte as bombas da aviação acertaram em cheio nos paióis. Mal cessou o ataque aéreo, que não terá demorado mais do que dez minutos, os grupos comandados por Matos Gomes e Raul Folques lançaram-se no assalto, enquanto o Agrupamento Romeu, comandado por António Ramos e onde seguia o comandante da operação, Almeida Bruno, tomava posição como força de reserva.
Os três agrupamentos envolveram-se em duros combates: “Os soldados de ambos os lados estavam tão próximos uns dos outros que era impossível delimitar uma frente”. O combate foi corpo a corpo e desenrolaram-se até às 14h10, quando Almeida Bruno dá ordem para o Agrupamento Centauro apoiar uma ruptura de contacto entre as forças do Batalhão de Comandos e as do PAIGC.
Este Agrupamento estava praticamente sem munições e Raul Folques ferido gravemente numa perna. A marcha em direcção a Guidage foi lenta e com várias emboscadas pelo meio.
Pelas 16 horas cessaram os combates e às 18h20 os primeiros homens do Batalhão de Comandos começaram a chegar a Guidage.
O PAIGC sofreu 67 mortos, entre os quais uma médica e um cirurgião cubanos e quatro elementos mauritanos, enquanto os Comandos sofreram dez mortos, dos quais dois oficiais, 23 feridos graves (três oficiais e sete sargentos) e três desaparecidos.
Uma nova coluna de reabastecimentos ficou retida em Farim, por ter sido atacada outra coluna entre Mansoa e Farim de que resultou a destruição de três viaturas que ficaram no terreno, tendo as forças portuguesas sofrido quatro mortos e 16 feridos, dos quais nove graves.
Na luta por Guidage, o PAIGC utilizou a sua infantaria apoiada por artilharia pesada e ligeira, além de um grupo especial de mísseis terra-ar. Em armamento utilizou foguetões 122mm, morteiro 120 e 82mm, canhões sem recuo de 5,7 e 7,5cm, RPG 2, RPG7, armamento ligeiro e mísseis Strela.
Dia 18 - Início da operação "Amílcar Cabral" realizada por forças do PAIGC contra o quartel de Guileje junto à fronteira com a Guiné-Conacri, ataque que apontava para uma tentativa de tomada do quartel.
Durante a execução duma coluna de reabastecimento, as forças de Guileje foram fortemente emboscadas por duas vezes, a cerca de dois quilómetros do quartel, tendo sofrido um morto, sete feridos graves e quatro feridos ligeiros. Por falta de evacuação aérea, um dos feridos graves (soldado metropolitano) faleceu quatro horas depois da emboscada. A falta de evacuação aérea resultava das grandes limitações impostas pelo aparecimento dos mísseis antiaéreos Strela, que impuseram fortes restrições ao apoio aéreo na região de Guileje e Gadamael.
O comandante do COP 5, major Coutinho e Lima, enviou mensagens a alertar para a gravidade da situação. Mas às 20 horas do dia 18, o PAIGC iniciou as flagelações a Guileje e às 02h20 o COP 5 solicitou apoio urgente, pois estava debaixo de fogo contínuo. Foi-lhe respondido que seria efectuado o apoio aéreo logo que possível e o major Coutinho e Lima pediu para expor directamente o assunto ao general Spínola. Reticente, este aceitou recebê-lo em Bissau, mas ao fim da tarde do dia 20 mandou-o regressar ao COP 5.
Às 14h15 do dia 21 foi recebida, em Gadamael, a última mensagem de Guileje: "Estamos cercados de todos os lados". Seguiu-se o silenciamento das comunicações de/e com o quartel.
No dia 22 a guarnição portuguesa retirou do quartel de Guileje para Gadamael-Porto, depois de cinco dias de contínua flagelação pelo PAIGC, que ocupou a base. Os militares portugueses seguiram a pé para Gadamael, deixando para trás as viaturas e o armamento pesado, destruído ou inutilizado.
Entre 18 e 22 de Maio, Guileje foi bombardeada 36 vezes. O interior do aquartelamento tinha sido atingido durante uma flagelação com 200 impactos de granadas, que causaram grandes danos materiais.
Dia 25 – Início de uma visita de Costa Gomes, chefe de Estado-Maior General, à Guiné, perante a grave situação que se vivia, onde acompanhou a última fase das operações e analisou as medidas a tomar para garantir a manutenção duma capacidade militar mínima.
Durante o mês de Maio o PAIGC realizou 220 acções militares de sua iniciativa, atingindo o valor mais elevado desde o início da guerra.
Gadamael, entre o meio-dia de 31 de Maio e o fim da tarde de 2 de Junho, esteve debaixo de fogo de armas pesadas e ligeiras continuadamente, tendo sido referenciados disparos de morteiros de 120mm, canhões sem recuo e lança-granadas foguete, com um número de rebentamentos estimado de 700, que causaram cinco mortos e 14 feridos e elevados prejuízos materiais.
No dia 1 de Junho, a Companhia de Caçadores 3520, de Cacine, transmitiu a seguinte mensagem para Bissau: "Informo Gadamael-Porto destruído. Feridos e mortos confirmados. Pessoal daquele fugiu para o mato. Solicito providências e instruções concretas acerca procedimento desta".
O Comando-chefe determinou que as tropas pára-quedistas, que se encontravam em Cufar, seguissem para Gadamael.
Síntese da situação da Guiné:
Durante o mês de Maio de 1973 as forças portuguesas na Guiné sofreram 63 mortos, 269 feridos e um prisioneiro, tendo o PAIGC realizado 166 ataques a posições militares portuguesas, 36 emboscadas, 12 ataques contra aeronaves, um contra embarcações, e implantado 105 minas, das quais 66 foram accionadas por militares portugueses, o que dá ideia do agravamento da situação sofrida na Guiné neste período.
Finalmente, e na sequência destes acontecimentos, realizou-se em Bissau, a 8 de Junho, um reunião de comandos, com a presença do general Costa Gomes, Chefe do Estado-Maior General. Concluiu-se pela necessidade de efectuar um retraimento do dispositivo, por forma a garantir um reduto final, em torno da zona central do território, com afastamento das guarnições de fronteira.
A manobra proposta configurava uma acção retardadora em profundidade para “ganhar tempo e consolidar um reduto final que in extremis, ainda possa permitir a solução política do conflito”, como o comandante-chefe referirá.
Esta solução era a clara admissão de que as forças portuguesas tinham de abdicar da posse de boa parte do território da Guiné e das suas populações para se concentrarem num reduto central. A soberania portuguesa seria assim apenas formal.
Nota: As minhas desculpas por incluir um texto mais longo que o habitual. Ver
Os Anos da Guerra Colonial de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes, pp.720-731.