sábado, 3 de março de 2012
Herculano, Liberdade e classe média...
Em Dezembro de 1852, já fez portanto 159 anos, Alexandre Herculano escreveu o Prólogo da sua obra História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, cujo Tomo I saiu em 1854. Neste Prólogo, Herculano aborda mais uma vez a situação política e as soluções em conflito, explicando os valores que estavam em confronto. Retomando o seu conceito da classe média e da sua importância na sociedade, termina aconselhando os leitores a procurar respostas “na voz íntima do seu coração” para as perguntas que formula na análise da sociedade do seu tempo, só então decidindo cada um, “entre a reacção e a liberdade”. Mais uma vez se constata que há textos com duração prolongada, como se verifica pelos seguintes pequenos trechos:
“Confundindo as ideias de liberdade e progresso com as de licença e desenfreamento, o direito com a opressão e a propriedade, filha sacrossanta do trabalho, com a espoliação e o roubo; tomando, em suma, por sistema de reforma a dissolução social, há poucos anos que certos homens e certas escolas encheram de terror com as suas loucuras a classe média, a mais poderosa, a única verdadeira e eficazmente poderosa, das que compõem as sociedades modernas. (…)
Isto é grave, porque é atroz; mas ainda há aí causa mais grave. É que entre os grupos que vitoriam em quase toda a Europa as saturnais da reacção há um mais forte, mais activo e, sobretudo, mais eficaz, porque se acha senhor, em muitas partes, do poder público e serve-se desse poder e dos soldados e magistrados e agentes públicos que lhe obedecem para anular num dia as garantias conquistadas pelas nações em meio século de lutas terríveis. É o grupo dos Cains; daqueles a quem, mais tarde ou mais cedo, Deus e os homens hão-de, infalivelmente, perguntar: «Que fizestes de vossos irmãos?» É o grupo daqueles que deveram quanto são e quanto valem aos triunfos da liberdade; que, sem as lides dos comícios, dos parlamentos, da imprensa; sem o chamamento de todas as inteligências à arena dos partidos; calcados por um funcionalismo despótico, por uma nobreza orgulhosa, por um clero opulento e corrompido, teriam fechado o horizonte das suas ambições em serem mordomos ou causídicos de algum degenerado e raquítico descendente de Bayard ou do Cid ou em vestirem a opa de meninos do coro de algum pecunioso cabido. Estes tais, que trocaram o aposento caiado pela sala esplêndida, o nome peão de seus pais pelos títulos nobiliários, o sapato tauxiado e o trajo modesto do vulgo pelos lemistes e cetins cortesãos, cobertos de avelórios e lentejoulas, das condecorações com que o poder costuma marcar os seus rebanhos de consciências vendidas; estes tais, recostados nos sofás, para onde se atiraram de cima do tamborete de couro ou da cadeira de pinho, sentem esvair-se-lhes a cabeça com os tumultos eleitorais, com as lutas da imprensa, com as discussões tempestuosas - e não raro estéreis - das assembleias políticas. Demasiado repletos, perderam nos vapores dos banquetes a lucidez da inteligência; demasiado mimosos, perderam, reclinados nos coxins das suas carruagens, a energia laboriosa da classe de que saíram. As dolorosas e longas experiências da liberdade afiguram-se-lhes, agora, como um desvario do género humano e as tentativas das nações para se constituírem menos imperfeitamente como uma série de erros deploráveis. (…)
Este é o grupo dos grandes miseráveis. Ao pé dele, às vezes confundindo-se, compenetrando-se ambos, falando a mesma linguagem, está o da burguesia tímida, cujos nervos são débeis de mais para resistirem aos frequentes abalos das comoções políticas. (…)
O remédio contra as ideias exageradas de cabeças ardentes ou levianas ou contra os desígnios dos hipócritas da liberdade não está em reacções moralmente impossíveis. O incêndio que ameaçou por alguns meses devorar a Europa e que arde ainda debaixo das cinzas não se apaga nem com sangue, nem colocando em cima destas o cadáver corrupto do absolutismo. Para o extinguir, necessita-se das resistências organizadas e enérgicas, das ideias sãs e exequíveis; necessita-se de que a classe média não esqueça ou despreze tantas vezes os seus deveres; isto é, cumpre que se lembre de que a sua vida é dupla, pública e privada, de cidadãos e de homens; que, assim como o mau chefe de família é um indivíduo desonrado, o que despreza as funções públicas que lhe incumbe exercer para a manutenção da liberdade igualmente se desonra”.
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