segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Raul Proença, O funcionalismo público


No dia 15 de Outubro de 1921, fez, portanto, 90 anos, Raul Proença escreveu na Seara Nova um texto sobre o funcionalismo público, do qual se recorda o seguinte trecho:

“Quanto aos vencimentos, continua a julgar-se que os funcionários públicos não têm o direito de viver da sua profissão - ou, o que tanto monta, o dever de a ela se dedicarem quase exclusivamente. Há mesmo um economista português, um dos mais ilustres membros da Cruzada Nuno Álvares, o sr. Anselmo de Andrade, que só vê uma maneira de fazer a selecção desejada e resolver definitivamente o problema do funcionalismo - é reduzir ainda mais os vencimentos dos empregados públicos. Crê S. Ex.ª que desta forma ficariam apenas nos quadros os que morressem de puro amor pela sua profissão, dado o caso verdadeiramente extraordinário de não morrerem pura e simplesmente de fome. Há neste alvitre, desculpe-nos S. Ex.a, qualquer coisa de pueril e ao mesmo tempo de monstruoso. Pueril, porque é, no fundo, cerrar os olhos ante as mais positivas realidades económicas crer que o processo proposto daria como resultado outra coisa que não fosse a transformação definitiva da burocracia no grande asilo de inválidos do Estado. Os que se dedicam quand même formam em toda a parte uma minoria insignificantíssima, uma super-élite que se conta pelos dedos. Querer erigir em regra o que não passa duma extraordinária excepção, é sofrer um desfalecimento lamentável nesse sentido das realidades que deveria ser o forte do economista. Dizia Pascal, e ao caso se pode aplicar o asserto, que «qui veut faire l'ange fait la bête». - E depois porque acaso extraordinário se daria a circunstância de ser a carreira burocrática a única que teria a singular propriedade d'attacher quand même? Porque não aconselha o sr. Anselmo de Andrade aos industriais e aos comerciantes a mesma baixa de vencimentos e salários ao seu pessoal? - Mas o parecer do sr. Anselmo de Andrade não é só pueril, é monstruoso. Aplicar precisamente aos que tanto se dedicam pela sua profissão, que estão prontos a servi-la por qualquer preço, a tarifa mais baixa de vencimentos, é explorar miseravelmente as virtudes superiores do homem, é fazer dessas virtudes as determinantes da sua própria miséria. Trata-se duma economia de souteneurs, de puro masoquismo financeiro: quer-se pagar o escrúpulo com a miséria e a bordoada. E não tem o Estado, mais do que as instituições particulares, o estrito dever de realizar a justiça social? Nem todo o indivíduo ou corporação tem por obrigação educar, moralizar ou exercer a justiça: mas o mais simples acto do Estado deve ser o dum juiz, o dum moralista e o dum educador. Efectivamente, como ser colectivo que é, dotado duma consciência que não pode dividir-se, contradizer-se ou negar-se a si mesma, o Estado não pode aplicar nas relações para com os indivíduos que o servem princípios que estejam em antagonismo com os que pratica nos seus tribunais ou prega nas suas escolas. O Estado ou não tem razão de existir, ou é a consciência suprema da Nação realizada”.

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