sábado, 26 de novembro de 2011
Eça de Queiroz, Carta de Bristol
No dia 24 de Maio de 1885, fez portanto 126 anos, Eça de Queiroz escreveu, de Bristol, uma carta ao conde de Arnoso, com interessantes considerações, entre as quais uma referência à recente morte de Victor Hugo:
"Meu querido Bernardo
Durante os dias que estive em Londres, lamentei constantemente que não tivesses vindo, porque, depois de ter atravessado a Civilização, de Madrid até aqui, sempre de guarda-chuva aberto, encontrei Londres banhada por um lindíssimo sol de Inverno. Quando digo lamento - quero dizer, por mim - porque não tive a alegria de te «ciceronear» e o curioso prazer de ver a primeira flor das tuas impressões. Porque, de resto, entendo que tu, decidindo ficar no teu doce buraco de S. Domingos à Lapa, mostraste uma sagesse que, sendo natural num Sócrates barbudo ou num pesado Marco Aurélio, surpreende num ardente oficial às ordens. Sim, amigo! Fizeste uma coisa prudente e sagaz! Porque, enfim, para quê o viajar? Todos os filósofos e todos os donos de hotéis são unânimes em dizer que se viaja para ver o que há de interessante no mundo. Ora no mundo só há de interessante, verdadeiramente, o Homem e a Vida. Mas para gozar da vida de uma sociedade, é necessário fazer parte dela e ser um actor no seu drama: de outro modo, uma sociedade não é mais do que uma sucessão de figuras sem significação que nos passa diante dos olhos. Quando falo de sociedade não me refiro àquela que vem no High-Life do Ilustrado: refiro-me às Sociedades, no plural e com S grande. Já o bom Flaubert falava da «melancolia das multidões estranhas». Essa melancolia é a mesma que se sente em vir de longe, para olhar para uma porta fechada. Quem for de Marco de Canaveses e queira gozar a vida, que fique em Marco de Canaveses, na Assembleia, na botica, e nos chás das Macedos! Se vier a Hyde-Park ou aos Campos Elísios, vê só a Vida por fora, nos seus contornos exteriores. É como estar mirando as paredes escuras de um teatro, onde se está passando, por dentro e em grande luz, uma interessante comédia. Por isso, nós, os Portugueses, pessoas infinitamente filosóficas, chamamos ao viajar: andar por fora. Expressão perfeita e profunda. Andar por fora, que melancolia, que desconsolação, quando estar por dentro é que é o interessante! Dir-me-ão os donos dos hotéis e as companhias dos caminhos de ferro que é necessário ir ver a Civilização. De acordo. Mas o que é a civilização de Paris? É o romance de Zola, e a descoberta de Pasteur, e o bom dito de Rochefort: e isso tudo vai ter connosco, onde quer que estejamos, pelo paquete. A melhor maneira de gozar a civilização, é ao canto do lume, de chinelas. Dir-me-ão ainda os donos de hotéis que se devem admirar os monumentos, e que Notre-Dame e Westminster são um elemento de educação. De acordo, estalajadeiros, de acordo! Para isso se inventou a fotografia. E, em resumo, meu querido Bernardo, grande foi a tua sabedoria em não querer andar por fora.
Eu já me estou aqui aborrecendo com valentia e esta grande e antipática Inglaterra começa como de costume a «agaçar-me» os nervos. Tudo, nesta sociedade, me é desagradável - desde a sua estreita maneira de pensar até ao seu indecente modo de cozer os legumes. O que tenho sofrido estes dias com os artigos dos jornais sobre Vítor Hugo! Furiosos de que a grande figura literária do século seja um francês, e não um inglês, e não podendo, por dever de boa educação, deixar de dar os pêsames à França, fazem-no com a boca torcida, lívidos, azedos, e pondo, por baixo das formas de respeitosa melancolia, toda a quantidade de depreciação que podem.
É uma canalha.
E a propósito de Hugo, sentiu-se por aí a morte do divino velho? A mim, o que me comoveu foi a atitude de Paris. Que os negócios se esqueçam, as festas se adiem, uma vasta cidade pare e fale baixo porque há algures, num canto de uma avenida, um poeta que está a morrer, é um sublime espectáculo. É consolador. Positivamente o homem não é tão feio como o pintam, e Paris é ainda o sítio em que bate mais largamente o coração da humanidade.
De novidades daqui, poucas que não saibas pela Agência Havas. Estive em Londres com o Luís [marquês de Soveral] que está mais gordo, todo teso de diplomacia e mais triste do que em Lisboa. Tem pela Inglaterra todo o entusiasmo que têm os que chegam. Está no período da ilusão que dá sempre a novidade; ainda acha os ingleses elegantes (que blague!) e as inglesas bonitas (que facécia!). Ainda acredita no conforto inglês! Ainda os jornais ingleses lhe parecem bem feitos. Ainda crê na grandeza moral da Inglaterra... Enfim, um baby!
Dá-me notícias dos amigos. (...)
(...) teu do coração
Queiroz".
Aos meus amigos que gostam da Inglaterra, se os há, prometo nova carta de Eça de Queiroz para breve...
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